O GLOBO
Se o notório Roberto Jefferson não tivesse decidido voluntariamente falar, o país poderia passar desta para melhor sem saber nada do que fora montado nos porões do governo Lula e do PT. Poucos conheceriam o hoje popular Marcos Valério. É forçoso reconhecer, diante dos fatos abrumadores que sabemos hoje, que houve falha generalizada no sistema de acompanhamento do que se passa no país. Um desses culpados é a própria imprensa.
Acho que nós jornalistas falhamos e precisamos aprender as lições da temporada. Muita gente no Congresso estava recebendo pagamentos — seja em bases mensais ou em boladas ocasionais — os bochichos eram freqüentes, muita coisa esquisita acontecia. Houve notícias publicadas, mas lateralmente, e o assunto nunca foi devidamente apurado. A imprensa brasileira é competente: ágil, investigativa, independente. Mesmo assim, não vimos que o dinheiro era farto demais no PT para ser de boa fonte.
O Brasil foi informado porque Roberto Jefferson assim o decidiu. Ele escolheu o órgão de imprensa — por eliminação — e falou porque achava que armavam uma arapuca para deixar o cadáver no colo do PTB. Não fossem a visão conspiratória de Roberto Jefferson, seu ressentimento e seus desatinos, hoje o país estaria lendo as análises bucólicas sobre o que seria a tranqüila reeleição do presidente Lula.
Seria bom pensar como foi que a imprensa não viu a espalhafatosa obra de engenharia financeira que é o valerioduto até o dia em que tudo começou a se esclarecer a partir do dedo de Roberto Jefferson apontado para "o Marcos Valério, o carequinha".
Vendo com olhos de agora, o país inteiro parece ter sido neutralizado pela devastadora campanha de marketing do PT de que eles eram os donos da bondade humana e da ética na política.
Uma certa propaganda da época da campanha é o resumo disso: jovens saem de uma boate alegres e passam em seu carro em frente a mendigos dormindo na calçada. Uma jovem detém seu olhar na cena, pára de rir e faz cara pensativa. Aí, uma voz ao fundo informa que, se aquilo o incomodou também, você é um pouco PT.
Ou seja, havia o PT, monopolista da verdade e da bondade humana, e os outros, os maus. Essa visão grosseiramente simplificadora da complexa realidade brasileira foi a empulhação que o partido vendeu ao país através dos truques da propaganda. Aliás, aquele anúncio, hoje se sabe, pode ter sido pago em algum paraíso fiscal com dinheiro de origem escusa. Até hoje, o presidente Lula quer manter vivo esse mundo binário. Semana passada, em Vitória da Conquista, afirmou que "os outros" não sabem o que é fome, mas ele, sim, sabe. As políticas públicas rompem o círculo de reprodução da pobreza se forem eficientes na formulação e na implementação. E isso não depende de como o líder político do país viveu sua infância.
Durante a ditadura, o mundo era assim, com apenas duas cores. Depois disso, tudo ficou mais complexo, mas o defeito de ver o mundo bicolor permaneceu em certa parte da inteligência brasileira. A estabilização da moeda, a responsabilidade fiscal eram consideradas idéias neoliberais, conluio com banqueiros e militância a favor do governo Fernando Henrique. Eram, na verdade, avanços civilizatórios que não pertenciam a um específico governo, como acaba de ser demonstrado no atual.
Outros canais de fiscalização falharam no país. O Ministério Público foi muito ativo no governo Fernando Henrique, mas se deixou apequenar no governo Lula. Há quadros valorosos no Ministério Público, capazes de deixar de lado as preferências político-eleitorais e agir tecnicamente. Mas houve alguns hiperativos no governo FH, estranhamente paralisados no governo Lula, falhando ao exercer suas funções de acompanhamento dos atos do Executivo.
O Banco Central, que alega ter melhorado seu sistema de fiscalização introduzindo operações preventivas com exigências de normas prudenciais, não viu que o Banco do Brasil emprestava sem lastro para o Partido dos Trabalhadores. Só agora é que exigiu que o Banco do Brasil e a dupla do valerioduto — Banco Rural e BMG — lançassem os empréstimos a prejuízo e fizessem provisão.
Falharam os dirigentes do PT. Quem era adversário do Campo Majoritário gastou todas as suas energias oposicionistas combatendo a política econômica e não notou que jorrava dinheiro dentro do partido e da base parlamentar. Tudo ficara estranhamente fácil: R$ 20 milhões em computadores, jatinho à disposição do candidato a presidente da Câmara dos Deputados, charutos caros e vários sinais de "novo-richismo".
O sistema de prestação de contas internas do PT entrou em colapso, o grupo do ministro José Dirceu mandava e desmandava, Delúbio falia o partido; mas as múltiplas correntes dissidentes não se preocupavam com as dívidas internas do PT, porque estavam muito ocupadas em defender o calote da dívida externa — dívida que, a propósito, tem diminuído constantemente.
Até hoje há quem, no país, ainda prefira continuar agarrado à explicação binária e reduza o conflito atual à tese canhestra de conspiração das elites. Ou há os que preferem dizer que meia dúzia de pessoas, dentro do partido e do governo, construíram um mundo imoral escondido de todos. Ao contrário do que disse José Sarney, esta não é uma crise de homens. Estamos diante de falhas de várias instituições. É preciso começar a admitir que o Brasil não é binário.
Entrevista:O Estado inteligente
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