Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 04, 2005

Lula, cuidado com os idos de agosto Por Rui Nogueira

PRIMEIRA LEITURA

Não sou, assim, o Tirésias do presidente Lula, o adivinho cego que previu que ele teria problemas. Não sou cego. Também não sou adivinho. Deixo o papel para o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, se é que me entendem. Mesmo assim ajudo Lula com uma advertência: "Cuidado com os idos de agosto". E ainda prossigo com um vocábulo ao gosto shakespeariano: é um mês aziago para a história brasileira, como sabemos. Ah, é verdade: Tirésias recomendou a César que tomasse cuidado com "os idos de março".

Não sei se a primeira-dama, Marisa Letícia, como Calpúrnia, a mulher daquele tirano que parece tão doce em Shakespeare, é dada a premonições. Aquela tentou impedir o marido de seguir para o Senado naquele fatídico 15 de março. As versões são controversas. Ou se via, no pesadelo, pranteando o marido degolado ou, então, chorando a derrubada de um pináculo que o Senado autorizara construir em sua casa. Era um mau presságio. César ainda hesitou, mas foi. Aguardava-o a conspiração de Brutus e Cassius. Morreu perfurado por 23 lâminas frias. Na tragédia de Shakespeare, o discurso que segue, de Marco Antônio, é um espetáculo. Porque, afinal, para o autor, César era mesmo um homem honrado. Mas há divergências, afinal de contas, sobre se o verdadeiro herói não era Brutus, um inconformado com a tirania do outro.

A história é assim, ambígua, e os romances e dramas dão curso às fantasias. Há para todos os gostos. Sou generoso com o presidente Lula em lhe lembrar uma personagem como Júlio César, tão cônscio de seus valores que não entendia bem o que ia à sua volta. E também não estou comparando as personagens —  que não faria isso com Júlio César. Tampouco desejando um futuro aziago para Lula, eu juro. Quando ele acabar de ler o Tocqueville que ganhou de Suplicy, Thomaz Bastos deveria lhe arrumar um volume de Comentários, os textos políticos escritos pelo dirigente romano. São de primeira qualidade. Ensinam muito sobre a natureza humana e, claro, o poder.

É que nos faria a todos um bem imenso se o presidente aprendesse a ler sinais bastante objetivos, assim como Calpúrnia lia sonhos. Amanhã, 5 de agosto, faz 51 anos que Gregório Fortunato, um faz-tudo delinqüente que fazia as vezes de chefe da guarda pessoal de Getúlio, arrumou dois desqualificados, Climério e Alcino, para matar Carlos Lacerda. Este sobreviveu com tiro no pé, mas seu segurança, o major da Marinha Rubens Vaz, morreu. Um inquérito da Aeronáutica chegou facilmente a Fortunato — não havia quebra de sigilo telefônico naquele tempo, mas Fortunato era um trapalhão. Getúlio não sabia de nada. Deixou uma carta-testamento patética e deu um tiro no peito na manhã de 24 de agosto. O presidente não sabia de nada, é verdade; na tal carta, acusa uma conspiração da direita, mas não faz nenhuma menção ao atentado. Culpa das forças do mal que queriam atentar contra o povo. Não! Culpa de Getúlio, que havia levado a baderna para dentro do Catete.

Reitero. Não estou antecipando dias trágicos para o presidente Lula neste agosto. Nem vou ficar aqui lembrando que, no próximo dia 25, faz 44 anos que Jânio Quadros renunciou à Presidência. De certo modo, acusando aquelas mesmas forças que Getúlio nos deu a entender terem apertado o gatilho. Faço-o, agora, sim, porque o discurso do presidente Lula, em Garanhuns, neste 3 de agosto passado, passou a barreira do aceitável para quem, enfim, aposta na democracia e reconhece o Estado de Direito. "Vão ter de me engolir" não é coisa que se diga em política, nem que o sujeito tenha mais realizações do que Júlio César. E olhem que o homem que teve a coragem de cruzar o Rubicão à frente de seus soldados e passar os cascos sobre as instituições romanas tinha um prestígio que Lula, com efeito, hoje não tem.

"Vão ter de me engolir" é coisa de pentacampeão solitário, como Zagallo, que, ainda assim, como se sabe, não está acima das regras do futebol. Só chegou lá porque aprendeu e seguiu as regras, ainda que muitos não gostem de seu estilo. Agosto não é um mês bom para lidar com feitiçarias e frases de efeito. Duas das maiores bombas jogadas até agora contra o governo Lula, como se sabe, surgem justamente neste começo de agosto, como é o caso das acusações envolvendo a Portugal Telecom e o que já não é acusação, mas fato: Marcos Valério pagou os advogados que atuaram em favor do partido no caso Santo André, aquele dos sete cadáveres liderados pelo do prefeito Celso Daniel.

Assim, será preciso tomar cuidado, presidente, com os idos de agosto. Lula sabe muito bem que "eles" — sejam lá quem forem — vão engoli-lo se ele não ameaçar engolir antes as instituições que o fizeram presidente e cuja natureza seu partido tentou alterar com um sem-número de expedientes que não honram a democracia. Não foi Carlos Lacerda que botou Gregório Fortunato no Catete. Não foram as oposições que entregaram o governo a José Dirceu e os subterrâneos do Estado à trinca Delúbio-Silvio Pereira-Marcos Valério. Foi Lula. "Eles" não somos "nós". "Eles", curiosamente, é o próprio Lula, que, então, será forçado nesta lógica de pronomes fora de hora a engolir-se a si mesmo se quiser sobreviver no cargo até 31 de dezembro de 2006.

Ainda que não seja impichado, acho que ele não pode ser candidato. Se candidato, não pode ser eleito. Se eleito, que tome posse e tente governar. A questão, então, será saber com quem, contra quem e para quê.  Fiz a minha parte depois de Garanhuns: cuidado com os idos de agosto!

Publicado em 4 de agosto de 2005.

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