Artigo - Sergio Bermudes |
O Globo |
2/9/2008 |
Imagine-se a surpresa, o espanto, o choque causados pela notícia da gravação de uma conversa telefônica entre o presidente dos Estados Unidos e um senador da Califórnia, ou do Papa e seu secretário de Estado, ou da Rainha da Inglaterra e o seu primeiro-ministro. As seqüelas da ditadura ainda recente, onde se ia, da tortura à morte, da cassação à aposentadoria compulsória, da invasão do domicílio à violação do sigilo de qualquer forma de correspondência, não podem, absolutamente, amortecer o impacto e a revolta com que precisa ser recebida a notícia da gravação da conversa do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, com o senador da República Demóstenes Torres. Impõe-se a análise do episódio, não como fato isolado da vida política do país - mais um, entre tantos ilícitos diariamente cometidos pelas autoridades -, porém num contexto maior, que leva a indagar a quantas anda a tenra democracia brasileira, na sua essência e na sua existência. Já no preâmbulo, a Constituição da República Federativa do Brasil apregoa a instituição de um estado democrático. No art. 1º, ela insiste na idéia, declarando que a República "constitui-se em estado democrático de direito". Prossegue a carta política, tratando, no art. 136, do estado de defesa, assecuratório da ordem pública e da paz social, seguido, se ineficaz, pelo estado de sítio, conforme o art. 137, I, da lei fundamental. Essas instituições visam a preservar a democracia, a prestigiá-la, desenvolvê-la e consolidá-la, num país cuja história se encontra pontilhada de períodos de exceção, caracterizados pela transgressão sistemática dos direitos fundamentais e da ordem jurídica. É exemplo disso o Estado Novo, de Getúlio Vargas, vestido com roupagens jurídicas pelo talento servil de Francisco Campos. O conteúdo anódino da conversa do ministro Gilmar Mendes com o senador Demóstenes Torres é irrelevante. Não dissimula, de nenhum modo, um fato por si só gravíssimo porque implica a violação do sigilo de comunicação telefônica, assegurado pelo art. 5º, XII, da Constituição federal. Cresce, entretanto, de significado, quando denuncia, a cavaleiro de qualquer hesitação, a existência de um estado de grampo, para criar expressão do feitio da utilizada pelo constituinte de 1988 com os mais nobres propósitos. Instaurou-se esse estado, inimigo das instituições democráticas, dentro do Estado brasileiro, no âmbito do Poder Executivo, aparentemente sem a ciência e a conivência do presidente da República e do seu ministro da Justiça, à revelia deles, o que só agrava o problema porque mostra que, como órgão de informação, a Abin transformou-se numa autarquia incontrolável, de tal modo desvigiada que chega à ousadia de grampear o telefone do presidente do STF, levando a cogitar se o presidente da República não estaria também submetido a um controle do órgão que lhe está subordinado. O Executivo não precisa aguardar uma provocação da Corte Suprema, para cumprir o compromisso do seu chefe e dos subordinados dele com a Constituição. Necessita compreender o alcance da anomalia, comprovada pela divulgação do diálogo, confirmado por seus interlocutores, de modo a afastar qualquer indagação sobre a autenticidade do texto, afinal publicado. Sabe-se que a tendência dos órgãos de informação é exceder-se na captação e acumulação de elementos de uso abrangente, mesmo contra as autoridades. Simples anedota, ou não, pode-se lembrar a atitude de Lyndon Johnson quando, assumindo a Presidência dos Estados Unidos, teve de decidir sobre a permanência de J. Edgar Hoover no comando do FBI, que ele controlou com mão de ferro, desde a sua nomeação pelo presidente Herbert Hoover e através dos governos de Roosevelt, Truman, Eisenhower e Kennedy: "melhor tê-lo dentro da tenda, fazendo pipi para fora, do que fora da tenda, fazendo pipi para dentro", decidiu o experiente e prático estadista. Mas é necessário conter os órgãos de informação para que ajam de acordo com a exigência constitucional da estrita legalidade, sem desvios nem exorbitâncias. A omissão do Executivo em punir, rapidamente, os agentes do ilícito e os responsáveis pelos órgãos transgressores será uma atitude de imperdoável conivência com uma situação comprometedora do estado democrático de direito. Reconheça-se que não se pode debitar apenas ao presidente da República, a ministros dele e funcionários de escalões inferiores a implantação do estado de grampo. A culpa é também de todos nós que aceitamos conviver com o descalabro: da sociedade civil, que encara as interceptações com naturalidade e resignação; dos advogados e do Ministério Público que não reagem à brutalidade; dos parlamentares emudecidos; do próprio Judiciário, agora atacado e ofendido na pessoa do seu chefe, quando autoriza, pusilânime ou desatento, indiscriminadas medidas cuja natureza só por exceção se admitiriam. Devem-se, então, analisar, detidamente, os atos judiciais permissivos do afastamento da garantia constitucional, até para pensar-se em providências corretivas adequadas, como, por exemplo, a outorga de competência exclusiva aos presidentes dos tribunais para autorizar a quebra de sigilo, com a responsabilidade correspondente. A menos que se queira fazer o que autores franceses chamam "o jogo da avestruz", é indispensável e urgente se buscarem soluções que alforriem o Brasil do estado de grampo e do estado de pânico que desconvencem da existência do estado democrático de direito, do sonho da Constituição e do povo, em cujo nome ela foi outorgada. |
Entrevista:O Estado inteligente
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