Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 29, 2008

A febre demarcatória editorial O Estado de S. Paulo





29/9/2008

Determina a Constituição que no prazo de cinco anos após a sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, fossem demarcadas por seu proprietário - a União - as terras públicas tradicionalmente ocupadas pelos índios, as chamadas terras indígenas. E o artigo 231, inciso I da Carta Magna define o que são as terras indígenas: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Terras “tradicionalmente ocupadas” são aquelas nas quais os índios estão desde os tempos passados e continuam no presente. Não se referem, portanto, àquelas que já foram ocupadas em alguma época e deixaram de o ser - pois, se assim fosse, até as áreas urbanas de São Paulo, Rio de Janeiro e de todas as cidades brasileiras poderiam ser “demarcáveis” em favor dos índios que já as habitaram. De acordo com o dispositivo constitucional, além de ocupadas, as terras, para serem “indígenas”, precisam ser “utilizadas para suas atividades produtivas”, “imprescindíveis” à preservação dos recursos ambientais e “necessárias” à sua reprodução física e cultural.

Estará o processo demarcatório, conduzido pela Funai em vários pontos do território nacional, obedecendo a estas delimitações constitucionais? A resposta é um definitivo não!

A febre demarcatória da Funai continua gerando conflitos em várias regiões do País, insegurança de produtores agrícolas, ante a ameaça de perderem suas terras e seus meios de sobrevivência, e tem colocado comunidades inteiras em pé de guerra, com graves confrontos prontos a explodir a qualquer momento. Essa verdadeira patologia decorre do desvio de finalidade do Decreto 1.775/96, que estabelece normas de orientação para a demarcação de terras indígenas da União. O decreto destina-se especificamente à demarcação de terras públicas, mas a Funai o tem usado para demarcar terras particulares.

A entidade oficial de proteção aos índios faz estudos antropológicos baseados em “ocupações pretéritas”, por parte de tribos indígenas, de terras que, de há muito, pertencem (com títulos) e são ocupadas, habitadas ou lavradas por particulares. Como não poderia deixar de ser, em Mato Grosso do Sul os produtores rurais estão literalmente apavorados, ante a possibilidade de suas terras serem tomadas e repassadas aos índios, como resultado de “estudos antropológicos” da Funai. Lá existem terras que começaram a ser tituladas há um século, em que não se enxergam índios há 50 anos, mas que, de repente, passaram a ser indicadas como se fossem “moradias” de índios. É que em julho o governo federal publicou seis portarias determinando que 26 municípios do sul do Estado sejam “investigados”, à procura de indícios de ocupação por parte dos índios.

Uma área de 10 milhões de hectares de terra fértil, nas localidades de Dourados, Miranda, Naviraí, Rio Brilhante e Maracaju, está prestes a receber a “visita” dos “antropólogos oficiais”. O que dela resultará? - é o medo de todos. Agrava a situação, que tornou jurídica e economicamente insegura a região em que está o miolo da produção rural de Mato Grosso do Sul - onde trabalham 30 mil agricultores, metade do total do Estado, responsáveis por 60% da produção de grãos -, o aumento das ocorrências de invasões de terras, a ponto de já se falar na “nova cria” da política fundiária federal: a mistura de índios com movimentos de sem-terra.

Todos os envolvidos nesses conflitos aguardam com ansiedade a decisão do Supremo Tribunal Federal, em relação à demarcação das terras indígenas na Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, como também o julgamento de ação que tramita há 26 anos, tendo por objeto titulações de terras na reserva pataxó Caramuru-Catarina Paraguaçu, localizada ao sul da Bahia. Mesmo que sejam questões diferentes - o último é um caso de legitimidade de titulação e não de extensão demarcatória -, permanece o núcleo essencial do problema, que é a definição de direitos (inclusive o de propriedade) atinentes à identidade nacional. Esperemos que estes, ao cabo, não venham a ser “implodidos” pela febre demarcatória.

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