Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 27, 2008

Le Carré e o serviço secreto britânico

Os espiões que 
entraram numa fria

O autor de O Espião que Veio do Frio lembra seus 
dias no serviço secreto britânico – e mostra como
a espionagem tende a criar paranóicos


John le Carré

Fotos Reuters e Walter Sanders/Time Life Pictures/Getty Images
VETERANO DA GUERRA FRIA John le Carré (à esq.) e a construção do Muro de Berlim: a caça a supostos comunistas infiltrados imobilizou as agências de inteligência ocidentais – o que muito divertiu os soviéticos

De maneira inesperada e infame, a espionagem virou notícia no Brasil desde que agentes da Abin, com suas maletas de escuta, passaram a grampear indiscriminadamente autoridades e cidadãos comuns. A lógica estragada que norteia as investigações tem seu exemplo mais notório nos documentos da Operação Satiagraha, realizada pela Polícia Federal com a ajuda de 52 arapongas. Maior entre os escritores de espionagem, o inglês John le Carré sabe bem como o trabalho nos serviços de inteligência fomenta uma mentalidade paranóica. Durante a Guerra Fria, antes de se tornar célebre com livros como O Espião que Veio do Frio, ele foi um espião de Sua Majestade. Neste texto inédito, Le Carré relembra esse período de sua vida e explica como surge e se propaga "o supervírus da loucura de espionagem".

Eu tinha apenas 20 anos quando portei minha primeira Browning 9 milímetros automática. Era um segundo-tenente do National Service, na Unidade de Inteligência, na Áustria. Foi minha primeira missão clandestina, e eu me sentia no paraíso. O ano, creio, era 1952, e eu estava servindo em Graz, o centro da zona ocupada britânica nos primeiros anos da Guerra Fria. A arma estava carregada. Seguindo o conselho do Oficial de Inteligência Aérea (OIA), eu a levava na cintura, apertada contra o quadril esquerdo, com o cabo para fora, permitindo que a sacasse rapidamente. Sobre ela, eu vestia um casaco verde impermeável, emprestado com uma desculpa falsa de um de nossos motoristas da Segurança de Campo, e, para complementar a dissimulação, um atraente chapéu tirolês verde, comprado do meu próprio bolso. Tal foi o disfarce que escolhi para uma viagem noturna ultra-secreta pelos campos pouco populosos da fronteira da Áustria com a Checoslováquia comunista.

O OIA, no entanto, optara por uma indumentária mais tradicional de espião: capa de chuva e chapéu de feltro, os quais, em combinação com seu bigode militar, lhe conferiam, aos meus olhos inexperientes, um visual um tanto britânico. Mas ele sabia bem o que estava fazendo. O OIA era um veterano do ofício. Nós, novatos do National Service, éramos lembrados disso com freqüência, a sotto voce, por nossos experientes superiores, no bar do Hotel Wiesler, reservado para oficiais britânicos, onde o OIA podia ser observado no início da noite, sempre sentado no mesmo canto, semi-encoberto por seu jornal austríaco, com um uísque escuro ao lado e um impecável lenço branco enfiado no punho de seu casaco esporte de oficial. O OIA já fez seu tanto disso e daquilo, eles diziam – e ficava sempre subentendido que nós ainda não fizéramos nada.

Getty Images

CAÇA ÀS BRUXAS
O senador Joseph McCarthy, perseguidor de comunistas infiltrados no governo: teorias conspiratórias que acabaram contaminando a CIA e o serviço de inteligência britânico

Como cabia a um homem de mistério, o OIA era solitário. O seu escritório, onde nunca entrávamos, ficava no sótão de uma elegante villanos limites da cidade, que nossos mestres militares em Viena haviam requisitado para nós, tipos da Inteligência. A ética da espionagem dita que, quanto mais alto no prédio, mais os assuntos ali tratados são secretos, o que explica por que nós, a escória da Segurança de Campo, éramos confinados ao térreo. Mas eu sabia qual era a sua janela. Era uma água-furtada, com grossas cortinas imundas. Ele não tinha nenhum posto conhecido, e nenhuma equipe. Nunca usava a nossa sala de correios. Presumíamos que ele tinha seu próprio sistema de comunicação, a respeito do qual não éramos informados. Muito de vez em quando, um caixote de lata chegava com papéis para ele no posto de correios do Exército, e, embora parecesse o mesmo tipo de porcaria com que nós lidávamos, ele se apressava a descer as escadas para pegar a caixa e levá-la, com um ar de imensa seriedade, para suas alturas. Dizia-se que ele fora muito condecorado, mas nunca o víamos de uniforme. Em suma, ele era um espião, no duro. Seu trabalho talvez fosse tão aborrecido quanto o nosso, mas ele na realidade era um Amigo Secreto, vale dizer, um membro do MI6, a mais alta forma de Inteligência conhecida pelo homem.

Por que eu, senhor?, perguntei, quando ele sugeriu que fizéssemos um passeio tranqüilo pela beira do rio.

"Porque você tem as qualidades necessárias", ele respondeu, no estilo agressivo de um homem que preferia não falar coisa alguma.

Como o senhor sabe que eu as tenho, senhor?, perguntei.

"Andei observando você."

Nosso carro era um inocente Fusca com placas civis. O OIA explicou que ele o tinha conseguido da Organização de Inteligência de Viena – que, na minha opinião, era o topo do Olimpo. Se fôssemos por acaso parados pela polícia austríaca, éramos dois homens de negócios de Graz, interessados em comprar fazendas com dinheiro vivo. Isso explicaria os 10 000 dólares na maleta marrom colocada sobre o banco traseiro do Fusca. Os dólares também vieram da Org. de Int. Somente se tudo o mais falhasse deveríamos apresentar nossas identidades e nos declararmos militares britânicos envolvidos em assuntos secretos.

A princípio, enquanto dirigia, só conseguia pensar na Browning acomodada no meu quadril. Mas, à medida que a noite se tornava mais escura e meu corpo relaxava e a Browning parecia menos fria, eu e a arma nos tornamos um par, tal como o OIA dissera que aconteceria. "Pense nela como uma parte sua", ele aconselhou. E assim eu fiz, ainda que, de quando em quando, eu passasse o dedo sobre a trava de segurança, para me certificar de que ela estava no lugar.

Em que tipo de situação eu deveria usá-la, senhor?, perguntei.

"Contingências. Se os bandidos checos perseguirem o sujeito, nós lhe daremos fogo de cobertura. Mas, atenção, não dispare antes de eu mandar." E, como um adendo: "Não atire nas pernas. Tente acertar na mosca".

A mosca?

"Dos ombros até o meio das pernas, e todos os pontos nesse intervalo."

Meus pensamentos se voltaram para o bravo homem que viéramos encontrar: um alto oficial da aeronáutica checa, que corria risco de vida, ou pior, para entregar informações preciosas para o Ocidente. Naquele exato momento, o OIA disse, nosso homem estava rastejando para o lado austríaco com a ajuda de guardas de fronteira amigáveis.

E quanto aos cachorros?, perguntei.

"Drogados."

Uma vez atravessada a fronteira, disse o OIA, que se atinha estritamente ao que eu precisava saber, nosso homem prosseguiria até uma certa aldeia austríaca, e era para lá que nós nos dirigíamos. O nome da aldeia permaneceu secreto até o momento em que uma placa na estrada o anunciou.

Ele está desertando, senhor?

O OIA balançou a cabeça, com um jeito sombrio. "O sujeito tem mulher e filhos, pelo amor de Deus. É uma única venda."

E então ele volta?

"Se ele conseguir."

E se não conseguir?

O silêncio do OIA era mais eloqüente do que as palavras.

Uma pequena estalagem localizava-se à beira da estrada vazia. Havia uma luz amarelada nas janelas. O único som era de vozes masculinas, que se calaram assim que entramos. O OIA tomou a dianteira, para o caso de haver problemas. Eu o segui com a maleta. Em uma única sala de teto baixo, um grupo de camponeses de macacão azul nos encarava, com espanto mudo, através da fumaça de tabaco. As mesas de bilhar ocupavam o centro da sala. Ninguém estava jogando. Havia um banco vago junto ao balcão. O OIA sentou-se ali. Com a maleta aos meus pés, sentei-me ao lado dele, observado pelos camponeses. O OIA pediu duas cervejas em um alemão engrolado e cortante. Hoje eu me pergunto se "duas cervejas" não seria todo o alemão que ele sabia. O proprietário do estabelecimento colocou as cervejas na nossa frente, e o barulho que elas fizeram ao bater na mesa pareceu ecoar para sempre.

"Que tal um jogo de bilhar?", o OIA murmurou, em inglês, pelo canto da boca.

Eu topo, murmurei em resposta.

A arma era mesmo parte de mim, de tal forma que eu tinha parado de sentir sua presença na minha cintura. Ao me inclinar para acertar a bola, fui surpreendido pelo tinir de um objeto metálico pesado batendo no chão de azulejo e olhei em volta para descobrir de onde vinha. Quando finalmente vi a Browning aos meus pés, a taverna já estava vazia de clientes e proprietário. Eu recuperei a arma, coloquei-a de volta na cintura e apanhei a maleta.

"Abortar", o OIA ordenou, detendo-se apenas para terminar sua cerveja.

Sua calma me surpreendeu. Nenhuma palavra de repreensão. Voltamos ao Fusca, entramos e esperamos. Por quem? A polícia austríaca? Nosso intrépido espião? O OIA parecia à vontade com qualquer uma das duas opções, mas nenhuma apareceu. Ele tinha um frasco com uísque, do qual tomamos alguns tragos. A alvorada chegou e, de alguma forma, o propósito de nossa grande missão evaporou. Com um suspiro filosófico, o OIA deu partida no motor e tomou o caminho de Graz.

Popperfoto/Getty Images
O VERDADEIRO TRAIDOR
O agente britânico Kim Philby: chefão do MI6, o serviço de espionagem inglês, ele na verdade trabalhava secretamente para os soviéticos. Exilado na União Soviética em 1963, tornou-se oficial da KGB


Como toda grande operação de inteligência, a nossa não teve um desfecho conhecido – pelo menos não para mim. Teria o bravo aviador checo sequer feito a tentativa? Eu não tive chance de perguntar. Alguns dias depois, o OIA sumiu sem deixar endereço. Teria ele devolvido os 10 000 dólares ou ficou com o dinheiro para usar outro dia? Em Um Espião Perfeito, fiz algum uso dessa história, mas os meus objetivos mais amplos não me permitiram dar o status que ela merecia como registro da primeira façanha de meu herói no Serviço Secreto de Sua Majestade.

Entretanto, com o amadurecimento dos anos, acho que encontrei uma resposta às perguntas que me incomodaram por tanto tempo. Não havia nenhum oficial checo cruzando a fronteira naquela noite. A pasta não continha 10 000 dólares; na melhor das hipóteses, havia ali um velho pijama e uma garrafa reserva de uísque. O OIA não era o filho preferido da Organização de Inteligência, nem um agente do MI6 infiltrado; seu trabalho era apenas tão tedioso e inútil como o nosso. Ele era uma daquelas almas abandonadas que a burocracia militar deposita em terras distantes e das quais se esquece por anos sem fim.

Ele era, para completar, louco, ainda que discretamente, e vivia em sua própria bolha secreta. Uma condição que, no mundo dos espiões, assim como um vírus em um hospital, é endêmica, difícil de detectar e ainda mais difícil de erradicar.

Eu também posso arriscar um palpite sobre a natureza de sua loucura, já que de tempos em tempos eu padeci de sintomas parecidos. O OIA, como o resto de nós, sonhava o Grande Sonho do Espião. Ele se imaginava na Grande Mesa dos Espiões apostando no jogo do mundo. Gradualmente, a lacuna entre o sonho e a realidade se tornou insuportável e, um dia, ele decidiu preenchê-la. Ele precisava de alguém que acreditasse naquilo, e foi assim que eu ganhei o trabalho. Eu preenchia os requisitos. Anos depois, por um curto período de tempo, tornei-me de fato um integrante do mundo que o OIA fingia habitar, mas isso não foi muito antes de eu próprio começar a fantasiar sobre um verdadeiro serviço secreto britânico que, em algum outro lugar, fazia corretamente tudo aquilo que nós fazíamos errado ou nem sequer fazíamos.

A minha solução foi inventar um mundo de espionagem mais adaptado às minhas necessidades, da mesma forma que fazia o OIA. Apenas nossos métodos eram um pouco diferentes.

"A Grande Epidemia 
de Paranóia durou 
dos anos 50 aos 70,
e foram os espiões
os mais afetados. 
O bacilo começou 
sua vida nos 
Estados Unidos"

O meu agradável companheiro de sala no Serviço de Segurança Britânico, mais conhecido como MI5, sofria, eu acho, de um traço similar da doença, apesar de os sintomas serem diferentes no seu caso. Mas essa é a essência da doença.

Estou falando do período da Grande Epidemia de Paranóia, que durou dos anos 50 aos 70, quando todos no MI5 acima de certa patente, até sir Roger Hollis, o diretor-geral, eram suspeitos de ser espiões russos. O vírus infectou um punhado de gente em Whitehall e Westminster, mas os espiões foram os mais afetados, e eles fizeram isso contra si mesmos por causa da insistência estridente da comunidade de inteligência dos Estados Unidos.

O bacilo surgiu nos Estados Unidos, antes de se alastrar em direção ao leste. Primeiro houve a era Joe McCarthy. McCarthy morreu em 1957, mas sua bandeira logo passou a ser carregada por um louco internado na CIA, de vastos poderes persuasivos, chamado James Jesus Angleton, que pregava que a totalidade do mundo da espionagem ocidental estava sendo controlada por cérebros do Kremlin. Do ponto de vista humano, a visão apocalíptica de Angleton era perdoável. Ele recebeu sua lição nas artes negras da traição de um tal Kim Philby, antigo agente duplo a serviço do Kremlin e, como chefe da filial do MI6 de Washington, amigo do peito de Angleton. Se algum espião jamais precisou de uma desculpa para endoidecer, James Jesus Angleton tinha a sua: fabuloso jogador de pôquer, mestre do universo da espionagem, um belo dia ele despertou e ficou sabendo que Kim Philby, seu reverenciado mentor, confessor e companheiro de copo, era um espião russo.

Isso não absolve a CIA, que fez de seu médico louco um herói popular e ficou assistindo enquanto ele envenenava a família. Angleton não apenas imobilizou sozinho sua própria agência. Com a bênção de seus superiores, ele prestou o mesmo serviço aos aliados mais próximos, para a diversão da KGB. Será que Angleton alguma vez foi convidado a encarar a única conclusão lógica para sua tese – ou seja, fechar todo o aparato da inteligência ocidental antes que os russos nos empurrassem no abismo? Eu duvido.

"O MI5 não se contentou 
em investigar seus 
próprios integrantes. 
Um grupo de oficiais também encontrou tempo para espionar o primeiro-ministro inglês, Harold Wilson"

O MI5, contaminado pela teoria de Angleton, reagiu de maneira soberba ao desafio. Não se contentou em investigar os seus próprios integrantes; um grupo de oficiais de alto e médio escalões também encontrou tempo para espionar Harold Wilson, o primeiro-ministro inglês, em um episódio da história do MI5 documentado nas memórias suspeitas de um dos conspiradores. O autor, talvez você se lembre, era Peter Wright, outro colega de pôquer de Angleton. Os esforços vigorosos do governo inglês em proibir o livro garantiram-lhe um público ainda maior.

A atmosfera daqueles dias nos corredores da Leconfield House, na Rua Curzon, era como a descrevi em O Espião que Sabia Demais e era a que prevalecia no corredor que levava à pequena sala que meu colega de meia-idade – vou chamá-lo de Arthur – e eu dividíamos. Na minha memória, era um lugar silencioso, no qual só se ouviam alguns passos furtivos no corredor. Era o meu primeiro trabalho nos escritórios da organização.

Arthur era um burocrata do MI5 da velha escola: um batedor de cartão leal, meticuloso e acomodado, sem nenhuma ambição de se tornar o que não era. Ele tinha algo de bibliotecário eficiente, com o cabelo grisalho cacheado transbordando para os lados, óculos sem aros e um ar de imenso zelo e urgência. Às vezes fazia um "hum" de dúvida, outras um "ts, ts, ts" de desaprovação, mas estava sempre ocupado e nunca fazia uso do horário de almoço: razão pela qual o assoberbado pessoal de segurança interna decidiu que ele era um espião russo.

O horário de almoço, concluiu-se, era quando Arthur fotografava os arquivos secretos para o patrão russo. O único problema era saber o que Arthur fazia com eles. Cinqüenta ou mais arquivos secretos e ultra-secretos contendo milhares de páginas haviam sido entregues a ele pelo departamento de documentação nos dois meses anteriores. Nenhum, diziam os rumores, fora devolvido.

AFP
ARAPONGAS CÔMICOS
Cena do filme O Alfaiate do Panamá, baseado em romance de John le Carré: espiões dispostos a acreditar em qualquer fantasia para dar sentido às suas existências monótonas


Teria Arthur se apropriado dos arquivos na esperança de devolvê-los antes que alguém se desse conta de sua falta? O trabalho duríssimo de fotografar documentos clandestinamente é ainda hoje desalentador. Quantas imagens podem ser registradas em uma única hora de almoço, mesmo com uma câmera com motor drive? Cada arquivo podia conter uma dúzia de volumes, ou mais. Cada um podia ter umas duas centenas de páginas. Ou estaria ele levando os papéis para fora do prédio? Às sextas e segundas, um bom número de funcionários do MI5 ia para o trabalho com as malas utilizadas para as viagens de fim de semana fora de Londres. Estaria Arthur contrabandeando arquivos em sua mala? E estaria seu patrão da KGB trabalhando, sobrecarregado, em algum minúsculo apartamento do East End, com as venezianas fechadas, talvez atrasado em sua tarefa de tirar fotografias?

Quando o número de arquivos sumidos aumentou, Arthur foi arrastado até o 5º andar e convidado a se explicar. Suas respostas nunca variavam: sim, ele havia trabalhado nos arquivos desaparecidos. Quando terminou, devolveu-os ao departamento de documentação. Se não estavam lá, ou era culpa do próprio departamento ou dos contínuos que empurravam os carrinhos com as pastas. A culpa não era de Arthur.

Não demorou para sua negação me afetar. Se Arthur não era espião, então eu tinha de ser. Eu havia surrupiado os arquivos da sua caixa de correspondência. O chefe de recursos humanos mandou me chamar. Eu estava gostando de meus primeiros meses em serviço? Tinha algum problema financeiro? Tudo bem com meu casamento? Quanto eu andava bebendo? Ele queria ser um pai para mim. Como Arthur, neguei ter deixado de devolver qualquer arquivo.

Agentes encarregados de trabalho burocrático no MI5 tinham armários de metal individuais em suas salas. Ao deixar a sala durante o expediente, você trancava a papelada no armário e levava a chave. Certo dia, no meio da manhã, dois homens de casaco marrom de artesão, o uniforme básico de nossa equipe de segurança interna, entraram com algum estardalhaço em nossa sala e exigiram que Arthur entregasse a chave de seu armário. Sem levantar a cabeça, ele pôs a mão no bolso de seu paletó cinza-brilhante de bibliotecário, entregou a chave e retomou seu trabalho. Todas as prateleiras de seu armário metálico estavam repletas de arquivos desaparecidos. Mas Arthur não deu atenção, fosse aos arquivos, fosse aos homens de casaco marrom que os observavam de boca aberta. Ele permaneceu curvado sobre o documento à sua frente, virando suas páginas atentamente.

Arthur e eu éramos "examinadores", ele o experiente, eu o trainee. Nossa tarefa era esmiuçar os registros de pessoas que estavam prestes a receber acesso a informações secretas e oferecer uma primeira opinião sobre se elas deveriam ter o acesso franqueado, ser investigadas ou ainda transferidas para cargos menos delicados. Como o OIA, Arthur era um solitário, sem vida doméstica que eu conhecesse. Pouco a pouco, mesmo assim, eu o persuadi a compartilhar comigo uma cerveja ocasional de sexta à noite no pub vizinho de Shepherd Market. E foi numa dessas noites que Arthur me contou uma história perturbadora. Um mês antes de eu chegar à sua seção, ele havia sido enviado a Nova York numa visita de colaboração ao FBI. E em Nova York, segundo Arthur, o FBI o havia interrogado. Não uma vez, mas dia após dia, sistematicamente. Ele comparou a provação à tortura psicológica contínua, e não tinha certeza de haver escapado ileso. A cada noite, ao retornar ao seu hotel em Manhattan depois de um dia de colaboração, ele descobria ter sido transferido a um andar diferente. Ninguém no hotel comentava o fato, ele disse. Quando pedia sua chave – educadamente – no balcão de entrada, o recepcionista ria, balançava a cabeça e dizia que ele havia se enganado de número, mas aqui está a chave certa de qualquer maneira, senhor. Assim, em vez de estar no 5º andar, onde havia dormido na noite anterior, ele se via no 8º, no 18º ou no 28º, sempre num quarto de mesmo tamanho, ele disse, e sempre com a mesma distribuição, as mesmas cortinas, armários e colchas. Mas sempre num andar diferente. Noite após noite após noite. E não havia sinais externos, Arthur prosseguiu, olhando o fundo de sua caneca de cerveja. O andar havia mudado, mas não o quarto. A cada vez seus ternos, camisas, meias e cuecas estavam guardados exatamente da mesma maneira que no quarto anterior. No banheiro era a mesma coisa: navalha, pincel de barba, pasta de dentes, fosse o que fosse. Ele era um homem metódico, disse Arthur. Conhecido por essa característica. O menor desvio teria chamado sua atenção, mas não havia nenhum. Só o FBI teria sido capaz de um trabalho como aquele. Perguntei a Arthur se tinha idéia do motivo para que o FBI tivesse feito aquele esforço todo, e ele disse que havia refletido longamente sobre a questão. Concluíra que a Agência o pusera sob pressão, esperando para ver como ele reagiria e com quem procuraria falar. "Eles estavam tentando se livrar de mim", disse ele à sua caneca. Por que fariam isso?, eu perguntei. Por causa dos casos de "exame" de que havia cuidado, ele disse: pessoas fichadas por haverem sido simpatizantes menores do comunismo em seus tempos de estudante, e a quem Arthur estendera o benefício da dúvida. Ele se perguntou em retrospecto se podia ter cruzado a linha. Se havia se deixado levar. Que linha?, eu perguntei. Levado aonde? "Livrar sujeitos que eu não devia ter livrado", ele disse. "Se eu era bonzinho com ex-comunas, talvez eu mesmo fosse um comuna, e não necessariamente um ex." Então ele acrescentou: "Pelo que eu sei, eles estão certos". Você está me dizendo que podia ser um simpatizante comunista sem sequer saber disso? "Há sujeitos assim", disse Arthur. "Se outros são, por que não eu?" Nos anos 50, era muito complicado aconselhar um amigo a procurar um psicólogo, mais ainda se ele tivesse o dobro de sua idade e você fosse um estagiário que dividia o escritório com ele cinco dias por semana. E havia um regulamento segundo o qual, se um funcionário precisasse consultar um psicólogo, ele antes teria de requisitar ao Serviço o nome de um profissional aprovado – o que no final equivalia a dizer ao MI5 que você tinha problemas mentais. Eu esperei que os delírios de Arthur fossem transitórios, mas não eram. Enquanto o OIA, na monotonia de sua existência obscura, se havia reimaginado como um cavaleiro destemido, Arthur se viu como vítima de sua própria caça às bruxas. Num mundo quase tão paranóico quanto o nosso é hoje, o avaliador de riscos de segurança tornou-se um risco para si mesmo. E, ao decidir isso, tomou a única atitude lógica à sua disposição: parou de assinar qualquer relatório. Trancou tudo onde nem o FBI poderia ver. Assim, estava a salvo.

"O supervírus da loucura
de espionagem se
dissemina em seu 
formato coletivo.
É um produto caseiro 
da indústria como um todo. Existe cura? Duvido"

O supervírus da loucura de espionagem não está confinado a casos individuais. Ele também se dissemina em seu formato coletivo. É um produto caseiro da indústria como um todo. Existe cura disponível? Duvido. Os mais sensatos cidadãos do mundo real, designados para gerenciar as atividades dos espiões, se tornam barro em suas mãos. A fé nos espiões é mística, alimentada pela fantasia e próxima da religião. Eles são uma espécie protegida em nossa psiquê nacional. Nossos bancos e serviços financeiros podem ruir, nossa economia pode estar afundando, nosso sistema de transportes pode ser uma catástrofe, nosso Domo do Milênio pode ser uma piada, o custo dos combustíveis, da energia e da água pode subir toda semana, mas nossa espécie está imune a isso tudo. Não importa quantas vezes eles tropecem na própria capa e esqueçam suas facas no trem de subúrbio, espiões nunca erram. São os homens os que mais merecem ser responsabilizados. Havia mulheres sábias presentes quando o notório e incrivelmente embaraçoso Dossiê Iraque, que justificou o envolvimento britânico na Guerra do Iraque – e que também é conhecido como Dossiê do Drible –, foi feito? Se havia, elas foram sobrepujadas pelos homens loucos, que não apenas plagiaram um texto já velho de cinco meses publicado num obscuro jornal acadêmico, mas também acreditaram seriamente, em seu orgulho e sua ignorância do mundo real, que poderiam se safar com isso. É um pequeno consolo, de todo condizente com o código de recompensa e punição tão caro ao nosso governo atual, que o principal arquiteto do dossiê tenha sido promovido a chefe de nosso serviço secreto.

Tudo isso é difícil de transmitir na ficção, ou ao menos foi para mim. Eu tentei, tempos atrás, emA Guerra no Espelho, e meus leitores me odiaram por isso. Tentei de novo em O Alfaiate do Panamá,dessa vez uma comédia, e fui mais ou menos perdoado. O problema é que o leitor, como o público geral ao qual ele pertence, e a despeito de todas as evidências em contrário, deseja acreditar em seus espiões. E é por isso, pensando bem, que nós fomos à guerra no Iraque.

© DAVID CORNWELL 2008

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