Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 29, 2008

Vítimas Denis Lerrer Rosenfield




O Estado de S. Paulo
29/9/2008

A questão indígena tem sido envolta numa tão espessa névoa ideológica que se torna, muitas vezes, difícil descortinar o que está realmente em questão. Os protagonistas se confundem, agentes históricos de atrocidades se eximem de suas responsabilidades e novas vítimas surgem. Pegue-se, por exemplo, uma publicação intitulada Outros 500. Construindo uma nova história, do Conselho Indigenista Brasileiro - Cimi/CNBB.

Nela, em sua apresentação, dom Pedro Casaldáliga considera toda a história brasileira como uma história de usurpação, carregando inclusive nos termos ao assinalar que se trata de uma história “etnocida, genocida, suicida”. Ora, o grande problema, como o próprio livro, aliás, assinala em várias partes, consiste em que essa história é de responsabilidade da Igreja e do Estado brasileiro. Os missionários exterminaram culturalmente os indígenas, destruindo as suas diferentes cosmogonias, a sua religião e a sua cultura em geral, por meio de conversões forçadas ao cristianismo. Foram também partícipes de massacres e de reclusões em missões, quando não diretamente de escravidão. Assinale-se, porém, que esses mesmos atores também lutaram pela proteção dos índios, integrando-os à nova civilização, contra as próprias políticas do Estado brasileiro.

O livro oferece vários exemplos. Na região amazônica, entre os séculos 17 e 18, “a corrupção era prática corrente nos resgates oficiais e envolvia desde funcionários encarregados da fiscalização até governadores, como Francisco Coelho de Carvalho, que exportava escravos do Pará para o restante do país e até para as Antilhas. Missionários entregavam índios para serem escravos, cedendo às ameaças das tropas ou favorecendo seus próprios interesses”. Ou ainda: “Os religiosos costumavam participar das tropas de resgate como capelães, para evitar abusos. Mas existiam também outros que ajudavam na escravidão.”

Observe-se, numa outra perspectiva, que os índios viviam em guerra constante entre si, não se podendo caracterizar o seu modo de vida como sendo o de um idílico estado de natureza a la Rousseau ou o do comunismo primitivo no sentido de Marx e Engels. Não se pode compreender a colonização portuguesa senão sob o prisma de uma disputa entre povos indígenas, que se digladiavam até a morte. Da mesma maneira, na fase das bandeiras, no século 17, havia sempre o envolvimento de indígenas contra indígenas, como no caso dos tupis aliados aos bandeirantes contra os guaranis. E se os portugueses conseguiram se estabelecer nessas terras foi porque índios colaboraram com eles, combatendo outros índios. Trata-se de um grande equívoco histórico considerar a existência de uma concórdia indígena originária, quando a realidade é bem outra.

Logo, a questão diz respeito à responsabilidade da Igreja naquilo que o Cimi chama de “genocídio”. A Igreja, conforme a orientação esquerdizante do livro, teria seguido essa política até 1972, quando o próprio Cimi foi criado, tentando, via conversão ao marxismo e à Teologia da Libertação, reverter ideologicamente esse quadro. A partir desta data, o Cimi/CNBB, graças a essa “conversão”, passa a pregar, ao arrepio dos fatos, a volta a um estágio primitivo, dito de natureza, como se este tivesse alguma vez existido. Desconsidera a história brasileira, feita de miscigenação racial e étnica, baseada na integração de culturas. Estamos diante de uma reviravolta da Igreja em relação à sua própria história, como se estivesse expiando um incontornável sentimento de culpa.

O problema se torna mais paradoxal pelo fato de o Cimi, em vez de assumir a sua própria responsabilidade, com o Estado brasileiro, transferir essa responsabilidade para os produtores rurais, que, hoje, nada têm que ver com o acontecido. Compraram as suas terras, tendo títulos de propriedade perfeitamente estabelecidos, registrados em cartório. Não cometeram nenhuma violência. Ora, são essas pessoas que se tornam alvos do Cimi/CNBB, como se fossem os responsáveis pelo que foi feito pela própria Igreja e pelo poder público. Ambos, na verdade, pretendem devolver a “terra roubada” por meio de um outro roubo, o cometido contra os produtores rurais.

A transferência de responsabilidades se faz mediante o recurso a Rousseau e Marx. O marxismo serve de instrumento de sua luta contra a propriedade privada. E Rousseau comparece como aquele que, além de denunciar a propriedade privada, teria estabelecido uma comunidade originária de homens intrinsecamente bons. A volta a Rousseau significa um ocultamento da Igreja e do Estado brasileiro, via Funai, de suas respectivas histórias. Num toque de mágica, o direito de propriedade e os produtores rurais passam a ser considerados os responsáveis por todos os malefícios da história brasileira.

Cria-se, então, uma situação inusitada: para reparar uma injustiça, comete-se outra. O trágico desta situação consiste em que os indígenas sofreram uma grande injustiça, cometida por diferentes atores históricos, dentre os quais se destacam a Igreja e o Estado brasileiro, em suas diferentes fases de constituição, em particular a relativa à escravidão. Os produtores rurais, por sua vez, são igualmente vítimas dessa situação, pois não são responsáveis pela conversão forçada das tribos indígenas pelos missionários nem pelas atrocidades cometidas pelo Estado brasileiro. Acontece, porém, que o Cimi e a Funai procuram reparar uma injustiça histórica com uma outra injustiça, que afeta pessoas inocentes. Tanto a Igreja quanto o Estado brasileiro não assumem as suas respectivas responsabilidades e as transferem a um terceiro, no caso os proprietários rurais. Pregam justiça com recursos alheios.

Se a justiça fosse o eixo de suas ações, deveriam comprar terras pelo valor de mercado e distribuí-las. E não expropriar terceiras pessoas que não responsáveis por essa história

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