Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 27, 2008

Crise: o pacote salvador do governo americano

Henry e Ben no escuro

O mundo sonha para que da Pearl Harbor financeira no
coração do capitalismo nasça uma economia menos sujeita
a terremotos e bolhas especulativas. Por enquanto, é apenas
um sonho, e só se saberá se isso é possível quando a crise
superar sua atual fase aguda, a do pesadelo


Marcio Aith, de Washington

Kevin Lamarque/Reuters

Mentes brilhantes
Henry Paulson, secretário do Tesouro, e Ben Bernanke, presidente do Fed: plano de 700 bilhões de dólares para estancar a crise



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Nesta reportagem
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Quadro: Para diminuir a alavancagem

A notícia do ataque japonês à base naval americana de Pearl Harbor, no dia 7 de dezembro de 1941, encheu de alegria o líder inglês Winston Churchill, que combatia quase sozinho a máquina de guerra nazista na II Guerra Mundial: "Naquela noite, dormi o sono dos salvos e agradecidos". Churchill sabia que a traição japonesa arrastaria os Estados Unidos para a guerra, tornando a derrota alemã inevitável. Depois da crise de Wall Street, que não sem razão foi comparada a Pearl Harbor, o mundo sonha em ir dormir com a mesma certeza de que do evento cataclismático no centro financeiro do capitalismo brotará uma vitória contra as bolhas especulativas que de tempos em tempos fazem terra arrasada da economia. Por enquanto, isso é apenas um sonho. A crise ainda está em sua fase de pesadelo. A semana acabou sem que o Congresso americano se colocasse de acordo com os termos do bilionário plano de salvação orquestrado pelas autoridades monetárias dos Estados Unidos, Henry Paulson, secretário do Tesouro, e Ben Bernanke, presidente do Fed, o banco central. Não houve acordo pelas dúvidas quanto à adequação, à eficácia do plano e, claro, pelo gigantismo do pacote – 700 bilhões de dólares, ou 2 300 dólares para cada homem, mulher e criança dos Estados Unidos.

Nenhuma ação anterior de salvamento das finanças americanas e mundiais teve tamanha envergadura. O valor supera em 200 bilhões de dólares a soma de todos os empréstimos já feitos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) desde sua criação, em 1944. Em torno do pacote multiplicavam-se na sexta-feira passada dúvidas de toda natureza. Indagava-se sobre o impacto de tal gasto no já gigante déficit fiscal americano de 500 bilhões de dólares. Questionava-se se, deixada à sorte da livre iniciativa, a economia não caminharia naturalmente para uma solução de mercado. Exigiam-se punições e que fossem identificados todos os culpados pela debacle. Enquanto isso, o terremoto financeiro vitimava mais um banco. O Washington Mutual, a sexta maior instituição financeira dos Estados Unidos, foi fechado pelo governo, na maior falência de um banco na história. Depois de perder 16,7 bilhões de dólares em retiradas feitas por clientes em pânico, o WaMu, como é conhecido, foi vendido ao JPMorgan Chase por 1,9 bilhão de dólares. O JPMorgan tornou-se o maior banco americano.

May Altaffer/AP

O POVO CONTRA WALL STREET 
Manifestantes no centro financeiro do capitalismo americano, diante da Bolsa de Nova York: protesto contra o pacote de salvamento aos bancos

"Esta crise é diferente de todas as outras. Ela surgiu no coração do capitalismo", diz, em uma entrevista exclusiva a VEJA, Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI. Quando Roma arde, todo o império fica em suspense. Por essa razão, pelas movimentações tectônicas que varrem do mapa do dia para a noite instituições centenárias, como foi o caso da Lehman Brothers, espera-se que o sofrimento não seja em vão. Mais de 4 trilhões de dólares já evaporaram das bolsas de valores em todo o mundo, mexendo com o bolso e com as convicções de centenas de milhões de poupadores nos cinco continentes. Os ânimos estão acirrados. As opiniões tentam superar em histeria os ruídos da própria crise. Ninguém o fez com tanta ênfase quanto Nicolas Sarkozy, presidente da França: "A idéia de um mercado todo-poderoso operando sem regras e sem nenhuma intervenção política é uma loucura. Os tempos de auto-regulação do mercado, do laissez-faire, chegaram ao fim. Acabou o mercado que está sempre certo". Novas regras para as transações financeiras são certas. Elas virão atreladas ao pacote de salvação de Washington. Disso ninguém duvida. Mas que ordem financeira emergirá depois que o pêndulo voltar a sua posição de descanso e a crise tiver saído da fase do pesadelo? Alguns dos mais estridentes comentaristas do momento atual, como o megainvestidor George Soros, vão se sentir um pouco constrangidos de ter enxergado nos extraordinários eventos de Wall Street os contornos revolucionários. Gary Becker, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1992, resumiu bem a questão na semana passada: "A crise final que vai matar o capitalismo tem sido vista em toda recessão profunda ou desarranjo financeiro grave desde que Karl Marx profetizou o colapso do sistema. Desta vez não seria exceção".

Que mudanças podem ser esperadas? A primeira e mais imediata é a redução do tamanho do mundo financeiro como proporção da chamada "economia real". No auge de 2003, os serviços financeiros representavam 40% de todos os lucros corporativos americanos. Essa proporção já caiu para 20% no ano passado. Em 2008, deverá ficar abaixo de 10% com o tombo de instituições tradicionais como Lehman Brothers, Bear Stearns e Merrill Lynch. Não se trata apenas do resultado da quebra de bancos, mas, principalmente, de um processo de "limpeza" de seus balanços.

Kenneth Rogoff, professor da Universidade Harvard e ex-economista-chefe do FMI, reconheceu em entrevista ao repórter Kalleo Coura que a regulação dos mercados voltou ao ponto zero e hoje é insuficiente para dar conta de uma indústria que se transformou radicalmente nos últimos trinta anos. Rogoff acredita que o primeiro e mais importante passo é conter os lobistas econômicos que hoje dominam Washington: "Quaisquer que sejam as medidas econômicas adotadas, elas não terão efeito se a questão política do poder dos lobistas não for atacada". O professor é contra a simples injeção de dinheiro no sistema sem que os culpados pela crise paguem caro por sua irresponsabilidade. Diz ele: "Wall Street precisa ter a chance de curar a si mesma, os líderes das grandes empresas financeiras mal gerenciadas têm de perder seu cargo, investidores que ignoraram riscos têm de perder dinheiro. O sistema, enfim, tem de vergar sob o peso dos erros que cometeu". O maior desafio, segundo Rogoff, é como fazer isso sem piorar ainda mais a liquidez financeira, o crédito, que é o sangue a manter vivo qualquer sistema financeiro. A sugestão dele é que os Estados Unidos adotem a mesma estratégia da Suécia, quando aquele país se viu diante de uma crise de insolvência semelhante nos anos 90. Explica Rogoff: "A Suécia simplesmente encampou as empresas financeiras falidas, restabeleceu seu patrimônio e reestruturou o sistema financeiro. Tudo muito rápido e muito doloroso, mas em um ano ou dois o país estava de novo crescendo com solidez". E o exemplo a evitar? "O do Japão", diz Rogoff, "que se recusou a reestruturar o sistema financeiro, evitou a falência das empresas e, por causa disso, ainda sofre os efeitos da crise ocorrida quinze anos atrás."

Eric Feferberg/Reuters

À FRANCESA
O presidente da França, Nicolas Sarkozy, viu na crise o fim do mundo financeiro como o conhecemos. Ele erra na ênfase mas acerta no diagnóstico.

Descobriu-se, tarde demais, que o nível de alavancagem dos bancos de investimento chegou a trinta vezes o valor do patrimônio. Foi com a alavancagem feita com "ativos tóxicos" que Wall Street conseguiu criar a megacrise das últimas semanas. Com 1 trilhão de dólares em hipotecas, foram criados 40 trilhões em investimentos complexos em que dívidas eram dadas em garantia de outras dívidas cada vez mais fluidas, maiores e mais distantes do valor original do imóvel que, em tese, garantia todo o sistema. Como se faz isso? Primeiro, é preciso crer que o valor original da hipoteca nunca será questionado – ou seja, que o imóvel dado como garantia não perca valor e, idealmente, continue se valorizando com o tempo. Essa era a parte simples da aposta, pois os imóveis nunca em tempo algum se haviam desvalorizado nos Estados Unidos. Ocorre que, para que a mágica funcionasse, não bastava que os imóveis continuassem se valorizando, era preciso que a curva de valorização apontasse para o céu, e por um tempo indeterminado. Bastou que a fagulha da dúvida assaltasse alguns poucos investidores para que o incêndio da Roma financeira logo se instalasse.

Como as autoridades deixaram que esse esquema prosperasse? A resposta a essa pergunta já embute uma segunda mudança estrutural decorrente da crise. Já se configura um novo desenho de supervisão bancária no qual a Securities and Exchange Commission, o órgão criado para regrar o capitalismo após o crash de 1929, terá muito mais recursos e poder. Nos últimos vinte anos, a SEC diminuiu-se perante a exuberância do mercado financeiro. Fechou os olhos para a prática de criar fundos de investimento específicos para absorver os papéis que todos sabiam ser "tóxicos". O ímpeto regulatório parece insaciável. Na última semana, sugeriu-se a criação de uma espécie de superagência internacional para controlar não só os excessos do mercado financeiro mas também regular e até diminuir o próprio fluxo de capitais entre os países – um dos principais motores da prosperidade mundial nas últimas três décadas. Argumenta-se que os Estados Unidos, com seu enorme déficit, são obrigados a atrair 3 bilhões de dólares por dia de investidores estrangeiros para fechar suas contas. Estaria aí a motivação para a fabulação de tantos instrumentos monetários exóticos criados em Wall Street, vendidos aos chineses, brasileiros e europeus. O diagnóstico está correto, mas não o medicamento prescrito. Segundo os oponentes dessa idéia, bastaria aos Estados Unidos diminuir seus enormes déficits, fiscal e externo, para reduzir naturalmente a exuberância de Wall Street. Bem, o certo é que mudanças virão. As mudanças para o bem, porém, não virão apenas das novas regras. Em plena crise, o mercado deu uma mostra de sua resiliência quando Warren Buffett, reconhecido como o mais capaz e seguro investidor da história, adquiriu por 5 bilhões de dólares parte do banco de investimento Goldman Sachs. A compra do WaMu pelo JPMorgan é outro sinal de que, como a natureza, o capitalismo abomina o vácuo criado pelos terremotos financeiros. Toda crise traz sabedoria aos agentes reguladores. Da mesma forma que novas regras não são suficientes para sair do buraco agora, é um erro imaginar que os crashes decorram única e exclusivamente da falta de regulação. Diz o economista Claudio Haddad: "O vírus da crise, assim como o da gripe, sofre mutações, e é fútil pensar que o conhecimento adquirido – ou uma nova, abrangente e ‘sábia’ regulação – vai evitar outro surto da doença".

 

SALVA-VIDAS PARA OS MERCADOS

O plano para eliminar os papéis tóxicos e restabelecer a confiança no sistema financeiro

Proposta 
Compra, pelo Tesouro americano, de títulos hipotecários de alto risco e de outros papéis podres que contaminam a contabilidade de bancos e corretoras

Objetivo 
Sanear o sistema financeiro, recuperar a confiança entre os bancos e evitar o estiolamento das linhas de crédito para o consumo e investimentos

Richard Drew/AP

EXPECTATIVA
Mercado à espera da salvação

Críticas 
• A versão original do plano dá superpoderes ao secretário do Tesouro, que teria carta branca para agir como bem entendesse
• O plano socializa a perda de banqueiros incautos 
• O socorro aprofundará o déficit público

Duração prevista 
2 anos

Custo inicial 
700 bilhões de dólares

Custo total estimado 
1,4 trilhão de dólares

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