Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 09, 2007

Quero absolver

Mauro Chaves

Quero absolver os corregedores que não corregem coisa alguma e já absolvem por antecipação os investigados, no que usurpam, para desativá-la, a função de fiscalização de agentes de um Poder. Quero absolver os que não escapam da mediocridade moral dos corporativismos, para os quais a falcatrua dos pares é sempre menor que a dos demais cidadãos. Quero absolver os que pelo coleguismo ou compadrio se permitem a mais acintosa complacência, que os torna cúmplices da indecência.

Quero absolver os que só encaram a função pública como um manancial de vantagens, privilégios e prebendas; como um potencial de enriquecimento pessoal, que nada tem que ver com o espaço privilegiado de trabalho, para servir à sociedade e defender os interesses coletivos. Quero absolver os que se aproveitam da nobre função de legislar, conferida a eles pelo povo em eleições livres e legítimas, para extrair de seus bestuntos normas espúrias em seu próprio benefício ou no de suas corriolas, como se fosse este o espírito da representatividade inerente às democracias.

Quero absolver os que se empenharam em inocentar, por votação secreta, os colegas mergulhados nas mais cabeludas bandalheiras: no recebimento de propinas para o apoio de projetos, na captação de luvas para a filiação partidária, na conquista de obras e cargos públicos pela via das malas cheias de dinheiro e dos dólares transportados na cueca. Quero absolver os que se têm utilizado dos argumentos mais inverossímeis para explicar o impossível, os que fazem pouco da inteligência alheia ao defender o gritantemente indefensável, mas que assim mesmo conseguem convencer seus pares de sua santa inocência, num clima de euforia que até inspira uma cínica dança da impunidade - com a expectativa de que a bandalheira absolvida hoje será a amena piada-dança de salão festejada amanhã.

Quero absolver os que passaram a mão em verbas do orçamento e as transformaram em pontes inacabadas e suspensas, ligando o nada a coisa alguma, símbolos maiores do desprezo profundo pelo suor no rosto dos escorchados e extorquidos cidadãos contribuintes. Quero absolver os que se utilizaram, em seus cambalachos corruptos e corruptores, de outro símbolo - o da ajuda ao sofrimento humano: as ambulâncias - com o qual se empanturraram do dinheiro público que tanta falta faz nos hospitais, laboratórios e postos de saúde. Quero absolver os que se especializaram na arte de trocar o mérito pela propina, a qualidade do projeto pela comissão sonante, o critério de aplicação de verbas públicas segundo o grau de necessidade pelo sistema de financiamento público segundo o grau de apetite.

Quero absolver os que juraram investigar a origem de dinheiro vivo destinado a compra de dossiê forjado contra adversários, mas deixaram tudo por isso mesmo, sem nenhuma explicação ao respeitável público. Quero absolver os que acham que é uma exibição inequívoca de decoro e a coisa mais natural do mundo o fato de um homem público confessar, no assento do pleno exercício de um Poder de Estado, uma relação clandestina de adultério, que é um engano em que se faz permanecer a própria família, como se a ética pessoal de uma pessoa pública nada tivesse que ver com o respeito devido, publicamente, à instituição da família, num tempo em que os relacionamentos falsos perderam a razão de ser, por não mais se tornarem legalmente indissolúveis.

Quero absolver os que acham a coisa mais natural do mundo o relacionamento promíscuo entre detentores de Poder público, situado em posição mais do que estratégica no comando da ação legislativa, e defensores profissionais de interesses de pretendentes a contratos de obras públicas, com suas costumeiras atualizações e seus indefectíveis aditamentos.

Quero absolver os que parecem ter pedido inteiramente a noção do significado do termo decoro: os que não sabem que decoro quer e sempre quis dizer decência, recato no comportamento, acatamento das normas morais, compostura, correção no agir pessoal ou social, circunspecção, pudor, pejo, recato, reserva, resguardo, vergonha, virtude - o que até se poderia considerar muito rígido para se exigir de um cidadão comum, mas, decisivamente, é exigência elementar para quem quer que se disponha e exercer um elevado cargo público, sobretudo a chefia de um dos Poderes de Estado.

Sim, quero absolver todos esses. O diabo é que não dá. Não há estômago que agüente.

Sugestão a Serra - E por falar em “não há quem agüente”, os estudantes que ocupam a Reitoria da USP não vão abrir mão da glória de serem arrastados. Já se consideram heróis, escapam do penoso anonimato e se tornam objeto de conversas animadas de familiares e namoradas. Não haverá negociação que os faça abandonar a visibilidade jamais sonhada. Então, que o governador dê o que eles querem. Faça com que policiais sejam bem treinados para carregarem os estudantes com a maior delicadeza, sem cassetetes, bombas de gás, spray de pimenta, balas de borracha ou arma de qualquer espécie. Que em hipótese alguma reajam a eventuais agressões - voluntários podem ser treinados especialmente para isso, que lhes faculte receber adicionais extras de periculosidade. Que ajam, enfim, com violência zero, testemunhada em pormenores pelas câmaras de televisão, visto que os ocupantes da Reitoria parecem ter um nível de politização mais chegado a um padrão Big Brother. Com isso o governador estaria cumprindo a determinação judicial, sua obrigação constitucional, enquanto os bravos estudantes concluiriam com êxito sua exibição performática.


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