Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 09, 2007

DORA KRAMER O verbo e o gesto


O presidente Luiz Inácio da Silva resume a interdição de uma emissora de televisão, por acaso a de maior audiência na Venezuela - o que corresponde à cassação de direitos dos efetivos e dos potenciais telespectadores - a um ato natural, tecnicamente corriqueiro até, do presidente venezuelano, Hugo Chávez.

Na entrevista que deu à Folha de S. Paulo na Alemanha, tentou conferir à ação uma normalidade que ela não tem. Em meio a um emaranhado de raciocínios equivocados, uma frase resume com clareza o equívoco-mãe: “O mesmo Estado que dá uma concessão é o Estado que pode não dar a concessão.”

Lula ignorou aí a motivação política do gesto. Do mesmo modo como não é aceitável um governo dar uma concessão para favorecer aliados, é inadmissível que recuse a renovação de uma licença para prejudicar adversários políticos.

Para fugir da questão em si, desviou o assunto para o embate com o Senado. Sofismando, buscou atribuir tudo a um “erro político” resultante dessas “coisas verbais” que, segundo ele, são as bases dos conflitos arranjados por Chávez.

Não viu problemas no gesto, mas no verbo, no tom da resposta do venezuelano ao apelo dos senadores para que revisse a decisão. De acordo com o presidente Lula, isso agora vai dificultar a aprovação da entrada na Venezuela no Mercosul, quando na verdade o óbice não é o que Chávez disse a respeito dos senadores - “papagaios” do governo americano - mas a infração à cláusula de vigência plena de democracia nos países sócios.

Quer dizer, o governo brasileiro já se prepara para atribuir a idiossincrasias do Senado, e não aos atos de Hugo Chávez, a possível rejeição do aval à Venezuela.

O presidente brasileiro demorou a se pronunciar sobre o caso da RCTV, mas quando o fez mostrou que o silêncio, embora pesado, lhe caía melhor que a declaração.

É fato que ele não prima pela habilidade de amenizar crises e contornar obstáculos da conjuntura quando se pronuncia a respeito. Há, em Lula, uma tendência - decerto herdada da trajetória oposicionista - de pôr lenha ao invés de jogar água fria nas fogueiras.

Desta vez não foi diferente. Poder-se-ia até dizer que, agora, o presidente se superou em sua capacidade de, para usar uma de suas imagens recorrentes, embolar o meio de campo.

De uma tacada só desautorizou o Senado de seu país, reforçou perante o mundo os laços com Chávez que vinham sendo diplomática e vagarosamente afrouxados, abriu a guarda para que a oposição levantasse suspeitas (forçadas) de que possa pretender tomar atitudes semelhantes e explicitou sua incompreensão sobre a impossibilidade de se tornar relativo o conceito de democracia.

De acordo com o presidente, a não-renovação da licença de funcionamento da RCTV é absolutamente compatível com a “democracia deles”. Nesse tipo de raciocínio democraticamente elástico, cabe tudo. Pelo critério de que há democracias assim ou assado, adaptáveis às circunstâncias dos governantes só porque foram eleitos pelo voto direto, o Hitler pré-holocausto também seria um democrata.

Na entrevista, o presidente Lula confirma as piores suspeitas a respeito da passividade com que recebeu as manifestações de apoio de seu partido e de seu assessor especial para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, ao fechamento da emissora: ele concorda com ela, acha perfeitamente natural um presidente da República usar de suas prerrogativas autocráticas para abrir ou fechar veículos de comunicação.

Digamos que a oposição recorre à caricatura e exorbita na suposição inexeqüível quando aventa a possibilidade de Lula manipular concessões por aqui. Mas não seria exagerado concluir que se as concessões no Brasil não tivessem se tornado objeto de exame obrigatório por parte do Congresso, o governo Luiz Inácio da Silva não faria o menor esforço para mudar a regra e ainda disporia de bom grado dessa prerrogativa.

Se faria dela uso político ou não, é uma hipótese que já não pode mais ser posta à prova. Ainda bem.

Pior a emenda

No recurso que apresentou contra a medida liminar da juíza Mônica Sifuentes suspendendo a verba extra de R$ 15 mil aos deputados, a Câmara argumenta que o pagamento não fere a Constituição quando ela obriga o pagamento de subsídio fixado em parcela única, porque não configura remuneração.

Se não tem outras razões a apresentar em defesa da manutenção do benefício, vai ser difícil a Câmara ganhar na Justiça, pois o artigo constitucional em questão veda o acréscimo de “qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”.

Se insistirem no assunto, os deputados correm o risco de, daqui a pouco, alguém resolver perguntar à Justiça se aqueles outros mimos, tais como pagamento de passagens, despesas de correio, telefone e auxílio moradia, também não ferem a Constituição já que não se incluem no conceito de “parcela única” e são, sim, adicionais.

E-mail: dora.kramer@grupoestado.com.br

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