O lar, tido como o local do aconchego e do amor, revela-se muitas vezes o ambiente da violência física ou psicológica que atinge todos, da criança ao idoso. A violência atinge a criança não só nos lares de classe miserável, mas também nas casas mais abastadas.
O descaso com a criança está no grande número de mortes fruto de negligência. Não é menos espantosa a violência física intencional causadora da morte. Dados do Ministério da Saúde indicam que as agressões domésticas são responsáveis pela morte de 7,78% dos bebês, especialmente em razão da Síndrome do Bebê Sacudido, ou seja, pelas sacudidas violentas. O porcentual da mortalidade de crianças de 1 a 9 anos, decorrente de agressões, é de 5,5%; cresce essa porcentagem nas crianças de 10 a 14 anos, que é de 20,61%.
De acordo com o Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São Paulo, nos casos de violência não fatal, predomina em casa a violência física, seguida da psicológica e da sexual. Essa realidade se desnuda ao se verificar que a violência por parte da mãe ou do pai é a causa predominante na decisão da criança e do adolescente de abandonar o lar para viver nas ruas.
Na periferia de São Paulo, cerca de 20% dos lares têm a mulher por única condutora. As dificuldades de sobrevivência, a sociedade discriminatória e o ambiente promíscuo facilitam o seu descontrole. Assinala Paulo Marco Ferreira Lima, no livro Mulher e Direito Penal, com artigos dos mestres e doutores formados pelo Departamento de Direito Penal da USP, que 40% dos indiciamentos de mulheres em inquérito policial dizem respeito à lesão corporal dolosa.
As mulheres se, por vezes, agridem, de outro lado são grandes vítimas da violência no lar, seja física, psicológica ou sexual, sendo de 20% o porcentual de mulheres que sofreram algum tipo de agressão.
Na vida, as mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, saem de plano perdendo, assinala Martha Nussbaum, como comprova a submissão imposta ao longo da História nas diversas civilizações. No lar, tradicionalmente visto como unidade orgânica, não se reconhecia ter a mulher objetivos e anseios próprios à sua realização, vista apenas como fonte doadora de amor, uma peça destinada a prestar serviços de alimentação, comodidade, carinho.
A dominação do homem no lar, como bem assevera Pierre Bourdieu, reproduz a dominação do homem na sociedade: na escola, no trabalho, na Igreja, no Estado. O exercício do poder do homem ante a “rainha do lar” faz da mulher uma rainha proclamada nos dias de festa, mas serviçal e inferior no cotidiano.
Quando a mulher sofre a violência física ou sexual, depois enfrenta outra violência, a secundária, que Ana Sofia Schmidt de Oliveira, na coletânea Mulher e Direito Penal, define ser o desinteresse das instâncias formais diante do acontecido. A mulher se torna, então, vítima novamente, pelo descaso do sistema legal, sendo mesmo vista nos crimes sexuais como a provocadora do fato.
A lesão corporal ou a ameaça a qualquer pessoa dentro ou fora de casa estavam sujeitas ao procedimento próprio dos Juizados Especiais Criminais. Por esse procedimento, busca-se transformar o juízo criminal numa instância de conciliação, por via de reparação civil ou por meio da transação penal, pagando o autor do fato cesta básica a entidade assistencial.
As mulheres, observa Cláudio Prado Amaral, também na coletânea Mulher e Direito Penal, não buscam nos Juizados Especiais Criminais a aplicação de penas aos seus agressores, mas a interferência apaziguadora para cessar a agressão.
O juiz, no entanto, não tem vocação para promover a conciliação, que exige ouvir e facilitar um compromisso de respeito mútuo. Magistrado e promotor, em sua formação técnico-jurídica, antes querem findar o processo, induzindo a vítima à desistência da ação ou impondo ao autor do fato a transação penal. A mulher agredida sai inconformada.
Miguel Reale, a quem relembro no primeiro aniversário de sua morte, ensinava que a norma é o produto de um complexo de fatores conflitantes, alguns deles emocionais, mesmo passionais, até o legislador efetuar uma escolha pela qual se objetiva uma dada fórmula normativa.
Na recente Lei Maria da Penha, relativa à violência doméstica sofrida pela mulher, por força da exaltação dos valores de proteção das mulheres pelos movimentos feministas, o nosso legislador copiou a Lei Orgânica nº 1 de 2004 da Espanha, ora contestada no Supremo Tribunal Federal por inconstitucional.
A lei brasileira é positiva quanto às medidas de prevenção à violência, mas discriminatória ao estabelecer que apenas a lesão sofrida pela mulher em casa, praticada pelo homem, não está sujeita ao Juizado Especial Criminal, sendo, então, inaplicável a conciliação, a transação penal e a pena pecuniária. Assim, o processo, muitas vezes não desejado, torna-se inexorável. Exige-se, também, na nova lei, que a mulher, infantilizada, só renuncie à ação criminal em audiência específica com o juiz.
Quebra-se o princípio da isonomia em face de outras vítimas da violência doméstica. Quer-se a igualdade, instala-se a diferença. Hoje os movimentos sociais desejam tudo e o seu contrário, como afirma Le Pourhiet, da Universidade de Rennes.
A solução não está no Direito Penal, mas no atendimento à mulher e à criança e na criação de espaço de respeito no lar, por instituições como o Centro de Referência às Vítimas da Violência do Sedes Sapientiae, a Casa da Mulher da Escola Paulista de Medicina, o Programa Bem-me-quer ou como a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco de Curitiba.
É grande engano pensar que o Código Penal é o instrumento apto ao enfrentamento de uma situação social grave como a das lesões ou ameaças ocorridas dentro do lar.