O risco é a euforia
O presidente do Banco Central diz
que o sucesso da política monetária
não pode atrasar as reformas
Giuliano Guandalini
Paulo Giandalia/Valor/Ag. O Globo | "Ficou claro que o Brasil não é uma exceção. A economia funciona bem desde que boas práticas sejam empregadas" |
Desde que tomou posse, em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mexeu no comando de praticamente todos os ministérios e órgãos vitais ao funcionamento do governo. Um único colaborador de primeiro escalão permanece no posto desde o início: Henrique Meirelles, presidente do Banco Central. Já são quatro anos e cinco meses no comando da política monetária. Pode parecer pouco, tendo em vista os dezenove anos em que Alan Greenspan permaneceu à frente do Fed (o banco central americano), mas é muito para os padrões brasileiros – Meirelles já é o terceiro presidente mais longevo da história do Banco Central brasileiro. Longe de ser uma unanimidade entre os políticos e os empresários, ele se mantém no cargo graças ao sucesso de sua política de contenção inflacionária. Quando assumiu, a inflação chegou a 20% ao ano no Brasil. Hoje gira em torno de 4%. Meirelles falou a VEJA por telefone, de Washington, pouco antes de tomar o avião rumo a Paris, para cumprir uma agenda de encontros com investidores e autoridades financeiras.
Veja – Desde que o senhor assumiu a presidência do Banco Central, em 2003, a inflação caiu de 20% ao ano para 4%. A batalha está ganha?
Meirelles – O país tem adquirido credibilidade no cumprimento das metas de inflação, e isso permite que os brasileiros convivam com juros menores, o que é ótimo para o país. Ocorre que o Banco Central não pode nunca dar sinais de que não tem mais compromisso com sua política de metas de inflação. Quando o banco central de qualquer país emite sinais de tibieza, os empresários remarcam preços e a inflação sobe. Como conseqüência, os juros também sobem. O fato de que as batalhas têm sido ganhas não significa que não é preciso mais lutar.
Veja – É legítima a crítica de que o Banco Central poderia ter optado por uma política mais leniente com a inflação de modo a permitir um crescimento maior da economia?
Meirelles – O debate é legítimo e não é exclusivo do Brasil. Mas é vital entender que o processo de desinflação foi feito e os bons resultados estão a demonstrar isso. Agora o desafio é de outra ordem. A despeito de todo o ruído que cerca essa questão sobre juros, o Brasil tem hoje as menores taxas de juros da nossa história recente. Não é pouca coisa em um país que teve um dos mais longos períodos de hiperinflação do mundo, com taxas de crescimento sofríveis. Inflação não traz crescimento. Ela desorganiza a economia, derruba os níveis de poupança, escasseia a oferta de crédito e mina os investimentos. As vantagens de lutar contra a inflação superam em muito os custos.
Veja – Ouve-se no Brasil que até o Fed se preocupa com o nível de emprego, e não apenas com a inflação...
Meirelles – Isso é um equívoco. O economista Ben Bernanke, atual presidente do Fed, afirmou recentemente que a melhor maneira de ele contribuir para o aumento dos níveis de emprego é assegurar que a inflação permaneça sob controle. Nos Estados Unidos, na Alemanha ou no Japão, ninguém defende mais inflação como estratégia para aumentar os empregos. Essa é uma dúvida que existiu mas foi superada. A principal missão dos bancos centrais é proteger o poder de compra da moeda, mantendo a inflação sob estrito controle. Foi um longo caminho evolutivo até chegar a esse grau de conhecimento.
Veja – Isso não é consenso no Brasil...
Meirelles – Eu entendo. A longa história brasileira de hiperinflação e planos econômicos heterodoxos deixou como substrato uma descrença generalizada e uma forte impaciência em relação a qualquer política econômica. Outra parte da explicação deriva do fato de que o regime de metas de inflação ainda é muito recente no Brasil. Ele foi implantando em 1999. Há menos de oito anos, portanto. Os resultados auspiciosos que ele já produziu são insuficientes para gerar o consenso.
Veja – A melhora na distribuição de renda no Brasil deve-se mais ao controle da inflação ou ao aumento do salário mínimo e a programas como o Bolsa Família?
Meirelles – Não há dúvida de que a queda da inflação foi fundamental para melhorar a distribuição de renda. Não só porque uma inflação menor assegura e até eleva o poder de compra dos trabalhadores, mas também porque preserva o valor do salário mínimo e do próprio Bolsa Família. O ensinamento que o BC está dando é que uma inflação civilizada aumenta o poder de compra da população. Com isso, há uma melhor distribuição de renda, que redundará na criação de mais empregos, com aumento de salário. Essa política já tem resultados positivos a apresentar, mas ainda é recente. A sabedoria agora é perseverar nela. Depende disso a manutenção das condições para o Brasil crescer de forma sustentável, com mais investimentos e com redução da desigualdade social.
Veja – A valorização do real em relação ao dólar não o preocupa?
Meirelles – O dólar está em queda diante da maior parte das moedas do mundo. Esse é um fenômeno global, conseqüência clara do déficit comercial americano. Essa questão precisa ser entendida no pano de fundo do que se passa na economia mundial. No caso específico do Brasil, é preciso lembrar que o real estava combalido diante do dólar em 2002. Nós chegamos ao Banco Central em 2003 com o real pelas tabelas, bastante depreciado. O que ocorreu a partir daí? A economia começou a dar demonstrações seguidas de qualidade. Isso diminuiu a percepção de risco oferecido pelo Brasil. Em resumo, o país mostrou-se aos olhos do mundo mais sólido e confiável. Tivemos grandes saldos na balança comercial e os fundamentos econômicos melhoraram gradativamente. A valorização da moeda nesses casos é natural. Eu diria que o câmbio reflete esse momento extraordinário que vive a economia brasileira. Além do mais, o câmbio atualmente se encontra dentro da média histórica dos últimos vinte anos.
Veja – Ainda assim, o dólar barato não promove a exportação de empregos?
Meirelles – Não é verdade que o país está perdendo vagas de trabalho. Pelo contrário, o Brasil tem criado em torno de 1,25 milhão de empregos formais ao ano. A despeito de o câmbio ser desfavorável para alguns setores, o ritmo geral da economia é vigoroso. As grandes empresas aumentaram sua produtividade e globalizaram ainda mais sua produção. Em outras palavras, elas conseguiram contornar as dificuldades decorrentes de o país ter agora uma moeda mais forte.
Veja – O Banco Central tentou segurar o preço do dólar triplicando o volume de compra da moeda americana. Em vão. O BC perdeu a capacidade de intervir na cotação da moeda?
Meirelles – O Banco Central tem meta de inflação, não de câmbio. Dito isso, nossa atuação no mercado cambial visa a tirar proveito da atual conjuntura favorável para aumentar as reservas e reforçar a resistência da economia a choques externos. Além disso, o BC se reserva o direito de intervir no mercado quando percebe situações em que, devido a desequilíbrios circunstanciais, o processo de formação de preços das taxas de câmbio passe por distorções. É errado pensar que com esses movimentos estamos tentando impor uma taxa de câmbio artificial. O mercado mundial de moedas passa de um 1 trilhão de dólares por dia. Nenhum governo tem mais poder de impor taxas de câmbio atualmente.
Veja – Boa parte do bom desempenho da economia brasileira deve-se ao cenário externo favorável e à simbiose entre as economias americana e chinesa. Até quando poderemos contar com o bom funcionamento desse dínamo produtor de riqueza?
Meirelles – O panorama internacional permanece positivo para o Brasil. É claro que sempre vão existir riscos. O maior dos riscos atuais é a aceleração da inflação nos Estados Unidos a um ponto que levasse o Fed a elevar fortemente as taxas básicas de juro da economia americana. Nessa eventualidade, é claro que será preciso redobrar a atenção sobre os impactos da mexida dos juros pelo Fed na própria economia americana e no resto do mundo. A história mostra que crises muito fortes nos Estados Unidos afetam todos nós. Ninguém está imune aos sacolejos da maior economia do planeta. A novidade positiva é que o Brasil, agora, está mais bem preparado para enfrentar choques externos do que esteve no passado. A dívida externa deixou de ser problema e as reservas internacionais superam 120 bilhões de dólares.
Veja – Não é curioso que hoje os maiores riscos não sejam mais das economias emergentes?
Meirelles – As preocupações de fato estão muito mais concentradas nos Estados Unidos do que em qualquer país emergente. Mas ainda há pequenos países emergentes aqui e ali em situação difícil. A diferença do que ocorria há dez anos é que as maiores economias emergentes exibem hoje fundamentos muito sólidos. O padrão, no passado, era de emergentes profundamente endividados, com déficits fiscais e nas contas externas. Agora isso é exceção. A maioria tinha câmbio fixo, o que atraía a especulação financeira. Havia muita experimentação e bravatas sem lastro na condução das políticas macroeconômicas. Tudo isso trazia volatilidade e convites à crise.
Veja – É racional, a seu ver, a recente elevação da alíquota de importação de têxteis e calçados no Brasil para proteger a indústria local da concorrência dos produtos estrangeiros?
Meirelles – De modo geral, quanto maior a abertura, melhor para a economia, porque isso ocasiona aumento de competitividade e de produtividade. Por outro lado, é absolutamente legítima a proteção por tempo determinado a segmentos específicos com alta concentração de mão-de-obra e que estejam tendo dificuldades intransponíveis para sobreviver expostos à abertura econômica. Essa política é praticada nas economias avançadas sem maiores alardes. Mas é preciso ressaltar que essa proteção eventual não é suficiente para resolver o problema. A única via segura é o trabalho constante em busca de maior produtividade não apenas de setores afetados, mas de toda a economia. A maneira eficaz e comprovada de estimular esse processo é fazer a reforma tributária e reduzir os encargos trabalhistas. Seria um erro deixar que o atual clima de euforia com o sucesso da política econômica antiinflacionária interrompesse o caminho para as reformas. Sem elas, nenhuma política econômica, por melhor que seja, será sustentável indefinidamente.
Veja – As ações das empresas brasileiras passam por uma forte valorização, com o índice Bovespa acima dos 50.000 pontos. O senhor vê sinais de bolha no mercado acionário?
Meirelles – Nos mercados em que há uma melhora nos fundamentos econômicos, como é o caso brasileiro, sempre existe o risco de exuberância excessiva, de exageros. Se for esse o caso, as correções virão obrigatoriamente. O que importa agora é estarmos atentos para não fornecer combustível monetário em volume tal que infle ainda mais uma possível bolha.
Veja – Nestes últimos quatro anos, quais foram os momentos mais difíceis para o presidente do Banco Central?
Meirelles – O período mais delicado foi entre abril e maio de 2003, durante a aplicação das taxas de juro mais elevadas desse governo. A inflação permanecia alta, acima de 1% ao mês. O remédio foi amargo, mas necessário. Houve uma grande pressão sobre o Banco Central. Foi difícil segurar as críticas, mas sabíamos que estávamos no caminho certo e perto de atingir o objetivo. Abandonar a política àquela altura seria morrer na praia. Houve um segundo momento de dificuldade, de 2004 até recentemente, quando os números do PIB (produto interno bruto) divulgados pelo IBGE não corroboravam nem captavam com precisão os indicadores positivos e de crescimento da economia. Só com os novos números, apresentados em março passado, a imprecisão foi corrigida. Ficou claro que a economia vinha crescendo mais rápido do que se estimava anteriormente. E sem inflação. É isso que se chama de crescimento sustentável.
Veja – Como o senhor reagiu à queda do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, talvez o principal interlocutor do senhor dentro do governo?
Meirelles – Foi um momento difícil para o país. Palocci havia sido um ator de destaque no processo de estabilização. O relacionamento do Banco Central com o Ministério da Fazenda permanece profissional e produtivo. As críticas perderam força. Ficou claro que a política monetária brasileira não só trouxe a inflação para uma trajetória de queda, mas gerou uma melhor distribuição de renda, aumentou o poder aquisitivo, estimulou a demanda, aprimorou a organização da economia, alongando o horizonte de planejamento das famílias e das empresas. Dizia-se que essa situação só seria atingida se relaxássemos a política monetária. Não o fizemos e o resultado veio. Ficou claro que boas práticas e experiências testadas e aprovadas internacionalmente funcionam também aqui. Hoje as pressões são de outra natureza.
Veja – Quais são as pressões agora?
Meirelles – São pressões derivadas de um delírio absurdo, quase irracional. Ele poderia ser resumido assim: já que a casa está arrumada, vamos desarrumar! Alguns perguntam: "Se a inflação está baixa, por que não voltar ao período de relaxamento monetário? Por que não nos permitimos algumas liberalidades?". Deixar-se embriagar pela euforia é o maior risco que o país corre hoje. A inflação está sob controle pela simples razão de que ela é mantida sob controle pelo Banco Central. Não é por mágica. Se o BC relaxar, a inflação volta. A inflação deixa de ser problema somente enquanto a política monetária é feita corretamente. Dizem que o BC erra porque não existem mais pressões inflacionárias e os juros poderiam estar mais baixos. Prefiro ver a situação de outra maneira. Se a inflação está baixa, é porque ele acertou. Nesse ramo não existem certezas absolutas, mas uma tem se mostrado infalível: quando certos críticos dizem que o Banco Central errou, é sinal de que ele acertou na mosca.