Católicos e protestantes dão passo histórico e superam divergências para formar governo de coalizão
Fernando Duarte Correspondente
• LONDRES Após décadas de violência e hostilidades por diferenças religiosas e políticas, a Irlanda do Norte deu ontem o seu maior passo rumo à normalidade com a instalação de um governo conjunto, formado pelo Partido Unionista Democrático (DUP), protestante e defensor da permanência no Reino Unido, e o católico Sinn Fein, favorável à integração com a República da Irlanda. Numa histórica cerimônia realizada no Palácio de Stormont, sede da Assembléia da Irlanda do Norte, o pastor Ian Paisley, líder do DUP, foi empossado como ministro-chefe, tendo como vice o ex-guerrilheiro católico Martin McGuiness, número dois do Sinn Fein.
— Hoje, não estamos fazendo propaganda, mas História. Acredito que estamos num caminho que nos levará para a paz e a prosperidade. Temos que superar as dificuldades para conseguirmos cumprir nossos objetivos — disse McGuiness durante a cerimônia de formação do governo.
A transferência pacífica da autonomia regional (Londres até então controlava diretamente a província) começou a se tornar realidade no final de março, quando Paisley e o líder do Sinn Fein, Gerry Adams, se reuniram para divulgar um acordo político que deu origem ao Gabinete anunciado ontem.
Entre as décadas de 70 e 90, mais de 3.500 pessoas morreram em confrontos e atos de terrorismo que não se limitaram às fronteiras da Irlanda do Norte e que, em 1984, por muito pouco não resultaram na morte da então primeira-ministra Margaret Thatcher. O último incidente foi o atentado de Omagh, em 1998. No entanto, nem o avanço posterior das negociações para o desarmamento de milícias como o Exército Republicano Irlandês (IRA) foi suficiente para desatar o nó da desconfiança entre ambas as partes.
A Assembléia, por exemplo, foi dissolvida em 2002, por conta de acusações de espionagem envolvendo o Sinn Fein. Desde então, a Irlanda do Norte vinha sendo administrada diretamente por Londres, num embaraçoso entrave da política de devolução de poderes locais levada a cabo por Tony Blair. Ontem, no entanto, as divergências pareciam mesmo coisa do passado: Paisley e McGuiness, outrora inimigos públicos declarados, eram só sorrisos e até fizeram piadas com Blair em frente às câmeras.
O novo ministro-chefe, cujo partido há até alguns meses não admitia dialogar com o Sinn Fein, tendo se recusado a participar das negociações do acordo de paz que em 1998 criou a primeira grande aproximação entre unionistas e republicanos, disse que a reabertura do Parlamento foi o começo de uma jornada rumo à paz.
— Peço ao povo norte-irlandês que aceite o desafio de fazer de nosso país um lugar em que todos os homens e mulheres serão iguais perante a lei — disse Ian Paisley, de 81 anos, e cuja chance de entrar para a história da Irlanda do Norte de maneira positiva foi considerada por muitos especialistas como uma das razões para sua mudança de posição.
Blair não escondeu a satisfação com o sucesso das negociações iniciadas por seu antecessor, o conservador John Major, mas que só ganharam força no seu governo. O acordo surge como o grande ponto positivo de seus dez anos de governo, manchados pela invasão do Iraque.
— Esta é a chance para que a Irlanda do Norte escape das correntes da História e construa novos capítulos. Houve quem criticasse nossos esforços nessa questão, mas fazer política também inclui algum tipo de compromisso em prol de um objetivo maior, ainda que sujemos as mãos — disse Blair, numa alusão às críticas sofridas quando reabriu conversações com o Sinn Fein e o IRA, em 1997.
República da Irlanda comemora coalizão Mais tarde, o premier disse ter ficado emocionado durante a cerimônia. O primeiroministro da República da Irlanda, Bertie Ahern, saudou o esforço do colega britânico e comemorou o acordo. Curiosamente, a estabilização da Irlanda do Norte poderá criar problemas para o político, já que as atenções do Sinn Fein agora se voltarão para o aumento de sua influência política em Dublin, às custas do partido de Ahern, nas eleições gerais de 24 de maio. Outra presença ilustre na cerimônia em Stormont foi a do senador americano Ted Kennedy, de origem irlandesa. Embora não muito alardeada, a atuação dos EUA no processo de paz foi importante, sobretudo depois que colônia irlandesa nos EUA diminuiu seu apoio ao Sinn Fein. Com agências internacionais A PRIMEIRA REUNIÃO da Assembléia da Irlanda do Norte, após transferência da autonomia regional, dada por Londres
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O risco da balcanização
Walter Oppenheimer
Unionistas e republicanos formaram um governo conjunto, mas isso não os obriga a renunciar a seus objetivos a longo prazo: para os primeiros, continuarem unidos ao Reino Unido; para os segundos, a unificação da Irlanda.
Entre os segundos está o atual governo da República da Irlanda, do Fianna Fail, que pretende que algum dia haja um referendo que aprove a reunificação das duas partes da ilha dividida. No entanto, num encontro realizado na semana passada, em Dublin, com vários jornalistas europeus, o ministro irlandês de Relações Exteriores, Dermot Ahern, admitiu que ainda "passará muito tempo antes que se contemple a possibilidade de um referendo " .
"Ainda há muita desconfiança. Ainda há sectarismo em muitas zonas da Irlanda do Norte. Ele é endêmico de ambas as partes. Um dos assuntos com os quais teremos que ter mais cuidado é que este novo Executivo não seja, na prática, um fator de divisão, de maneira que acertem entre eles que o Sinn Fein somente se ocupe das zonas nacionalistas e o DUP apenas das zonas unionistas. Seria como balcanizar a paisagem", acrescentou o ministro Ahern.
Há formas, no entanto, de prevenir uma balcanização da ilha, sobretudo a tutela de Londres e Dublin e a cooperação além das fronteiras através dos órgãos criados nos acordos da Sexta-Feira Santa, "que se reunirão para tratar de matérias como turismo, estradas, promoção do comércio e outros temas que afetam toda a ilha".
O ministro recordou que um dos aspectoschave da paz é a renúncia da Irlanda à sua reclamação territorial sobre o norte da ilha, aceitando que a unificação só é possível se for respeitada a minoria unionista.
"John Hume (antigo líder nacionalista moderado) teve um papel especialmente relevante em sua época ao enfatizar que o importante não era unir o território da Irlanda, mas sim o povo da Irlanda.
Seus esforços tiveram influência em meu próprio partido. O acordo de paz é aceito por todos, mas houve uma época na República em que havia divisões sobre como se devia proceder", concluiu o ministro .
WALTER OPPENHEIMER é colunista do El Pais
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Três décadas de conflito
DRAMA NORTE-IRLANDÊS
Belfast • Já provocou mais de 3.700 mortes e tem origens políticas e religiosas que remontam ao século XVII, quando a Inglaterra começou o grande movimento de colonização protestante sobre a maioria católica • Em 1922, a ilha foi dividida em Irlanda (sul, católica) e Irlanda do Norte (protestante) – o que foi rejeitado pelos católicos, intensificando o separatismo • O auge do conflito foi nas décadas de 70 a 90 • Enquanto o IRA realizava diversos ataques na Inglaterra e na Irlanda do Norte, inclusive contra civis, paramilitares protestantes unionistas atacavam católicos • A polícia e o Exército britânicos tentavam manter a ordem, mas são suspeitos de apoiar grupos paramilitares contra católicos • Um episódio marcante foi o Domingo Sangrento, em 1972, quando soldados britânicos atiraram contra uma marcha pacífica de católicos por direitos civis, matando 13 • A instalação de um governo compartilhado é prevista no Acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998, e concretizada no ano seguinte após eleições para o Parlamento local. No entanto, o governo foi suspenso em 2002, devido a problemas no desarmamento do IRA, e a Irlanda do Norte voltou a ser administrada por Londres • No início de março, a população local foi novamente às urnas para escolher representantes para o Parlamento, e o DUP e o Sinn Fein surgiram como partidos com mais representantes
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Ian Paisley
É presidente do Partido Unionista Democrático (DUP, na sigla em inglês).
Nascido em 1926, tornou-se pastor aos 20 anos e logo entrou para a política.
Anticatólico fervoroso, sempre pregou a supremacia protestante no Ulster e, nos anos 60, promoveu uma série de manifestações contra o Exército Republicano Irlandês (IRA) até fundar o DUP, em 1971. É conhecido por seu radicalismo: é contra bebidas alcoólicas, gays e chamou o Papa João Paulo II de anticristo. Nunca havia aceitado negociar com os republicanos, mas, com o desarmamento do IRA, permitiu que os unionistas o fizessem nos últimos anos. Concordou em compor o novo governo em março.
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Martin McGuiness
Líder do Sinn Fein, o braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA).
Nascido em 1950, entrou para o IRA aos 20 anos, tornando-se um dos comandantes do grupo. Trabalhou com Gerry Adams para solidificar a base de apoio do Sinn Fein, que se tornou o maior grupo nacionalista da Irlanda do Norte. McGuiness foi um dos principais negociadores do Acordo da Sexta-Feira Santa para acabar com os conflitos armados, em 1998.
Em 1997, foi eleito para o Parlamento britânico, mas recusou-se a ocupar o cargo e prestar juramento à Coroa. Negou uma acusação, feita por um tablóide, em 2006, de que teria trabalhado para a inteligência britânica.
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