Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 06, 2007

FERREIRA GULLAR

Os urinóis de Marcel Duchamp


Duchamp, irreverente que fosse, jamais teria posto bigodes e barbas na "Mona Lisa" original

FOI EM 1917 que Marcel Duchamp enviou para o salão da Associação de Artistas Independentes, de Nova York, um urinol de louça (desses que se fabricam em série para usar em banheiros masculinos) a que pôs o nome de "Fontaine". Faz, portanto, 90 anos do gesto irreverente que teria sérias conseqüências no curso da arte do século 20. Foi o primeiro ready-made.
O júri do salão hesitou em aceitar como arte aquela "obra", assinada por um tal de Mutt, que ninguém conhecia. Mas, como se tratava de uma entidade de artistas independentes -ou seja, contrários aos valores tradicionais da arte-, pegaria mal rejeitá-la. Por isso, foi aceita, mas posta no fundo do salão da exposição, atrás de um tabique. Duchamp, que pertencia à Associação, ficou furioso e desligou-se dela.
O urinol -que até aquele momento não tinha maior importância- foi deixado num canto por seu autor e, com o tempo, sumiu ou se quebrou. Mais tarde, Duchamp decidiu "realizar" outras "Fontaine"; comprou outros urinóis semelhantes e os assinou sob o mesmo pseudônimo.
Explico a origem dos ready-mades, baseando-me numa entrevista de Fernand Léger à revista francesa "Cahiers d" Art". Conta ele que, em 1914, visitava uma exposição de indústria naval, em Paris, na companhia de Brancusi e Duchamp, quando se depararam com uma enorme hélice de navio. Duchamp, entusiasmado com a beleza da hélice, perguntou a Brancusi, escultor, se era capaz de fazer algo semelhante. Ele sorriu e se afastou, seguido por Léger, enquanto Duchamp continuou parado diante da hélice. Talvez não seja exagero meu supor que esse fato -a descoberta de que um objeto industrial pode ser expressivo- tenha levado Duchamp a inventar os ready-mades.
Claro que outros fatores concorreram para o surgimento do ready-made, como, creio eu, a crise das artes artesanais na sociedade industrial que se expandia. O urinol de Duchamp seria a expressão sarcástica da morte daquelas artes e, ao mesmo tempo, um modo de gozar a pretensão dos artistas que ainda se julgavam criadores de obras de arte.
Essa questão, que envolve a crise da arte e as novas técnicas industriais, estará presente no trabalho de Duchamp ao longo de sua vida, mesmo porque, contraditoriamente, o inventor do ready-made nunca abandonou o trabalho artesanal, como comprovam duas obras dele: "O Grande Vidro" (1915-1923) e "Étant Donnés" (1946-1966), ambas inacabadas; sem falar na "Box-in-a-valise", caixa em que juntou miniaturas de suas principais obras.
Não obstante, talvez por atender a uma necessidade da época, foi o ready-made que ditou o rumo predominante na arte internacional das cinco últimas décadas, marcada muitas vezes por manifestações em que a rebeldia se confunde com o niilismo e, particularmente, com a negação da própria arte. Deu-se menos atenção ao autor do "Étant Donnés", quando libera suas fantasias eróticas numa poética de sonho, do que ao iconoclasta que pintou bigodes e barbas numa reprodução da Mona Lisa. Noutras palavras, o Duchamp imitado e seguido foi o que tentou desmoralizar a aura da obra-prima de Da Vinci; só que nenhum de seus seguidores, possivelmente, terá se perguntado se o cara desabusado, que fez isso numa reprodução da Mona Lisa, teria feito o mesmo no original. Duvido muito.
Aliás, vem a calhar um fato ocorrido, ano passado, em Paris, quando um artista performático de nome Pierre Pinoncelli quebrou a marretadas um dos urinóis "Fontaine" de Duchamp, pertencente ao acervo do Centro Pompidou. Um ato de irreverência um pouco mais violento que o dele, quando adulterou a obra-prima de Da Vinci; e mais, enquanto Duchamp nada sofrera, o jovem performático foi processado.
Perante o tribunal, o advogado de defesa teria alegado que Pinoncelli nada mais fizera que repetir a irreverência de seu mestre, com o atenuante de que, enquanto a Mona Lisa tinha sido feita por Da Vinci, o urinol destruído era um ready-made, ou seja, já estava feito quando Duchamp o assinou. Mesmo assim, o Centro Pompidou insistiu em ser indenizado pela perda da obra que, no mercado de arte, valeria 2,8 milhões, enquanto a defesa alegava que consultara o catálogo de um fabricante de sanitários e lá o preço do urinol era de apenas 83.
Por isso, afirmo que Duchamp, por mais irreverente que fosse, jamais teria posto bigodes e barbas na obra original, que pertence ao acervo do Louvre. Liso como era, correria o risco de passar o resto de seus dias na cadeia.

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