O ano de 2005 ficará na história do Brasil como o ano do seu maior escândalo político, e os três primeiros anos do governo Lula, como o momento da mais grave traição aos ideais de esquerda de que tenho notícia. Entretanto, o fato de, no Brasil ou na América Latina, partidos políticos chegarem ao poder e não lograrem fazer governos de esquerda não é novidade.
Governos apoiados por partidos de centro-esquerda, como o PMDB e o PSDB, ganharam eleições, mas seus governos não chegaram a ser de esquerda, ou seja, não lograram reduzir a concentração de renda existente no país.
O caso do PT é mais grave porque, embora seu perfil fosse mais claramente de esquerda, seu governo aprofundou a incrível transferência de renda dos pobres para os ricos por meio da elevação do nível real das taxas de juros que o Estado paga aos rentistas. Nesses termos, fez um governo de direita. O fato de ter aumentado os gastos com o Bolsa-Família não muda o quadro, pois faz parte do próprio Consenso de Washington promover programas focados de renda mínima.
Não vou discutir aqui as razões desses fatos. Não vou insistir no oportunismo radical dos principais líderes do PT, particularmente dos diretamente responsáveis pela política econômica, que preferiram se acomodar aos interesses dos mais poderosos -internamente, dos rentistas e do setor financeiro, que defendem juros altos, externamente, das multinacionais aqui instaladas e dos exportadores para o Brasil, que se beneficiam da contrapartida de juros altos: taxa de câmbio valorizada-, mas vou tentar entender o porquê desse paradoxo: no Brasil, a esquerda ganha eleições, mas não governa.
Vou tentar entender o porquê desse paradoxo: no Brasil, a esquerda ganha eleições, mas não governa |
A explicação que tenho para isso está baseada na distinção entre elites políticas, sociedade civil e povo. Diferentemente dos países europeus, e particularmente dos países escandinavos, nos quais esse paradoxo não existe, no Brasil, a distância entre as elites e a sociedade civil é pequena, enquanto é grande a da sociedade civil em relação ao povo.
Ora, como quem realmente tem poder em uma sociedade democrática é a sociedade civil, quando ela é elitista, como acontece no Brasil, o governo de esquerda eleito pelo povo não tem, ou julga não ter, suficiente apoio para realizar uma política realmente de esquerda.
Nos governos autoritários, o poder real pertence a uma elite ou oligarquia. Já nos democráticos, embora o poder seja formalmente do povo, no qual cada cidadão tem um voto, o poder real está na sociedade civil, na qual o poder de cada participante é ponderado pelo seu conhecimento, dinheiro ou capacidade de organização.
Essa definição de sociedade civil, entretanto, deixa claro que ela poderá ser mais ou menos "democrática". Uma sociedade civil é elitista quando as diferenças de poder derivadas do dinheiro, do conhecimento e da organização entre os cidadãos são muito grandes; é democrática quando conhecimento, riqueza, renda e organização se distribuem mais igualitariamente e a sociedade civil se aproxima do povo.
Assim, uma sociedade civil como a da Suécia é democrática, enquanto a do Brasil é elitista.
O desenvolvimento político não se expressa apenas na melhor qualidade das instituições democráticas, mas na democratização da sociedade civil. Uma sociedade tão desigual como a nossa em termos de poder de seus membros produz governos populistas demagógicos, que buscam compensar artificialmente o povo pela sua própria incapacidade de promover o desenvolvimento econômico e a distribuição de renda que de fato beneficiaria esse povo. Governando mal, tais governos perderão legitimidade e serão instáveis.
Por isso é que a universalização da educação, a distribuição da renda e a multiplicação de formas de organização da sociedade civil são tão importantes em um país como o Brasil. Mas é evidente que estamos aqui diante do clássico problema do ovo e da galinha: a esquerda se elege, mas não governa porque a sociedade civil é elitista; não governando, esse elitismo se perpetua.
Será possível romper esse círculo vicioso? Sem dúvida, desde que os líderes políticos não sejam meramente oportunistas. O desafio da esquerda, obviamente, não é implantar o socialismo, mas governar o capitalismo melhor do que os capitalistas. E, para isso, esse governo deverá contar com apoio de empresários nacionais progressistas, que vêem na distribuição de renda uma condição para o desenvolvimento sustentado do Brasil.
Mas, além disso, o político de centro-esquerda terá que usar o espaço de liberdade que a política democrática sempre assegura.
A política é, sem dúvida, a arte do compromisso e do possível, mas é também o espaço da escolha e da liberdade. A prudência levará o político a fazer compromissos, a coragem, a exercer sua liberdade. A centro-esquerda social-democrática ou social-liberal (para a qual também o PT estava caminhando) é a única esquerda que tem condições de governar o capitalismo. Apesar do elitismo da sociedade civil, ela pode governar o capitalismo fazendo um governo de esquerda se o oportunismo der lugar à prudência e à coragem.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 71, é professor de economia da FGV-SP e colunista do caderno Dinheiro. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil: 1930-2002".
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