Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Merval Pereira Dirceu e seu dilema

o globo

O ex-ministro José Dirceu já está em Paris, de volta de sua peregrinação ao interior da França, onde, levado por seu amigo e ghost-writer Fernando Morais, teve a companhia do escritor Paulo Coelho — sobre quem Morais escreve um livro. Agora chegou a hora de decidir o que fazer do livro que planeja escrever. Embora esteja obcecado por ele, que considera uma chance de fazer uma limpeza em sua biografia, Dirceu está às voltas com um dilema que lhe consome os dias: contar ou não toda a verdade de sua experiência na campanha eleitoral e no Palácio do Planalto, nos primeiros anos de Lula, ajudando a organizar e a tocar o governo.

O que está sendo decidido nesses dias em Paris é o recomeço da vida política de José Dirceu. Se contar o que sabe, pode até mesmo mudar o rumo da História.

Paradoxalmente, esse recomeço pode significar o fim da carreira política do mito que Dirceu ajudou a criar e a eleger presidente da República. Na ilusão, agora ficou claro, de guiar o mito, de governar através do símbolo do ex-operário que chegou ao poder.

O general Golbery do Couto e Silva, o estrategista de Geisel e Figueiredo, considerado o feiticeiro do regime militar, dizia que qualquer um que chegasse à Presidência, ao alcançar o topo da rampa do Palácio do Planalto depois de saudado pela Guarda Presidencial, se convenceria de que está ali por virtudes próprias.

Aconteceu com Figueiredo, que Geisel e Golbery fizeram presidente na suposição de controlá-lo, e aconteceu com muito mais razão com Lula, um líder carismático nato. Dirceu hoje alimenta sentimentos ambíguos em relação a Lula, deixa escapar críticas indiretas, mas se recusa a falar mal dele em público. Mas também não o defende em conversas informais, como ainda faz quando se pronuncia publicamente. Mesmo assim seu comportamento vem mudando, de acordo com a percepção do que recebe de volta do Palácio do Planalto.

Como sabe muito, a língua coça de vez em quando, mas até agora tem conseguido manter longe dos indiscretos os eventuais ataques que possa fazer ao homem que ajudou a eleger presidente da República. Não há dúvidas de que se sente, ele sim, traído. Quando o presidente Lula admitiu, por exemplo, na entrevista ao "Roda-Viva", que Dirceu seria cassado, mesmo injustamente, deu ali o empurrão, o sinal verde que faltava para a cassação. Dirceu tem dito a amigos que se Lula tivesse se posicionado claramente contra a cassação, muitos dos aliados teriam mudado os votos. Por isso não dá muito importância quando, depois da cassação, o presidente subiu o tom de sua defesa.

À sua maneira, Dirceu vem revidando. Disse que Lula era "um personagem difícil" em entrevista à revista do Fórum Social Mundial. E, em recente entrevista à imprensa estrangeira, foi mais sutil: admitiu que Lula tem 50% de chances de perder a eleição, mas isso não deveria ser encarado como o fim do mundo. Dirceu revela com freqüência um sentimento de estar "com a faca e o queijo na mão", apesar de as aparências dizerem exatamente o contrário.

Dirceu vai ao Fórum Social Mundial na Venezuela, e planeja viagens aos EUA e a Cuba, os dois pólos de sua atuação política nos últimos tempos quando, exatamente por ser homem de confiança de Fidel Castro, passou a ser um canal especial do governo republicano de Bush. Mas Dirceu diz que precisa voltar às suas origens, e a ida a Betharram foi o primeiro passo nesse sentido. Ele visitou, com Paulo Coelho, uma igreja da ordem de Nossa Senhora de Betharram, cujos padres fundaram um colégio em Passa Quatro, sua terra.

Nas conversas em Paris, e em telefonemas para o Brasil, Dirceu já deu a entender que não tem mais nada a perder, só a ganhar. É um homem ferido, mas que acha que tem boas chances de dar a volta por cima, principalmente porque detém informações que podem comprometer o governo. Demonstra não gostar mais de Lula, e em alguns momentos pode deixar escapar um sentimento de menosprezo, como em uma situação descrita pela jornalista Mônica Bergamo, que acompanhou sua viagem ao interior da França.

Numa conversa, Paulo Coelho teria comentado que Lula tinha que focar mais suas ações, ser menos dispersivo. Coelho avalia Lula. "O Hugo Chávez (da Venezuela) se posiciona, o George Bush se posiciona. O Lula ainda está no meio do caminho. O Chávez tomou o espaço dele. Ele precisa se posicionar", diz. "Tá querendo muito do Lula", brinca Dirceu, baixinho.

Nas recentes conversas no exterior, volta e meia Dirceu ia abrir a boca, parava, e dizia "não, melhor não dizer nada, eu não posso falar mal do Lula". Mas revelava ter vontade, e muita. Sobre a entrevista de Lula ao "Fantástico", por exemplo, José Dirceu achou as respostas do presidente, que leu na internet, "muito infelizes".

Porque leu na internet, Dirceu não sentiu o que muitos sentiram quando o presidente Lula quase se trai em uma das respostas, quando disse que Delúbio já havia assumido sua culpa. Em seguida, acrescentou: "O Dirceu ainda...". Deu a impressão de que diria "ainda não", o que seria trágico para ele e Dirceu. Mas disse que Dirceu ainda estava com a situação indefinida, sem provas que o condenassem.

Não resta dúvida de que Dirceu é um homem magoado, e como não é de seu feitio esconder os sentimentos, revela-se "mordido" e acha que o livro pode ser um ajuste de contas. Por outro lado, está na dúvida entre entregar tudo ou não entregar nada e, preso a essa questão fundamental, até ontem não tinha escrito uma só linha.

É claro que Dirceu jamais reconhecerá que cometeu as ilegalidades de que é acusado, mas imaginemos que decida assumir a versão oficial petista do caixa dois, e revele que Lula sabia dela. Ou que pelo menos escreva o que já disse várias vezes, que nada fez sem o consentimento de Lula. Em plena campanha eleitoral, seria um prato cheio. Se, ao contrário, continuar respeitando a "lei do silêncio", o máximo que pode acontecer é o livro ser um fracasso.


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