Tudo isso foi feito em apenas 14 anos, sem guerra com outros países e sem revoluções sangrentas, sem a morte de milhões de pessoas por inanição, como em 1917. Foi a revolução mais pacífica e tranqüila que se tem lembrança na história.
Sim, há 14 anos, no dia 25 de dezembro de 1991, a União Soviética deixou de existir, Gorbachev renunciou, Boris Yeltsin decretou a morte do comunismo e tornou-se o primeiro presidente de uma Rússia que vivia desde sua origem no negror de ditaduras cruéis e seculares, de todos os tipos, dos czares à comunista, de Lenin e do tenebroso e sangrento Stalin.
Poucos se lembram e os comunistas que abdicaram do direito de pensar preferem esconder, mas foi sob o regime soviético, em fevereiro de 1919, que a 8ª reunião do Comitê Central Executivo da URSS aprovou por unanimidade a criação de campos de concentração, os Gulags, na região de Kolina, construídos por "dissidentes" do partido. Milhares dos 3 mil levados para lá a fim de construir o campo foram fuzilados sob a acusação de "agitação anti-revolucionária". Ao leitor que se interessar por mais informações, leia os Recits de Kolina ou O mundo dos campos de concentração e a literatura soviética, de Michel Heller. Ou até mesmo Um belo domingo, do ex- sofridíssimo comunista Jorge Semprun.
Lembro isso para deixar bem claro que a ditadura do proletariado da União Soviética, aquela sociedade que "um dia não teria mais classes", de acordo com Marx, criou e deu origem aos campos de concentração. Campos soviéticos de morte, tão dramaticamente descritos por Soljenitsyn, que duraram 74 anos, até Gorbachev! E os "intelectuais" ociosos, hipócritas, de carteirinha do partido, que fizeram a sua "resistência" nos bistrôs da Rive Gauche de Paris, diziam, mentirosos, que não sabiam de nada, e isso após terem estado na União Soviética e visto com os próprios olhos a liberdade sufocada.
O único que teve a coragem, a ousadia de denunciar tudo isso foi André Gide, sob o protesto virulento dos intelectuais "ilustrado" da maioria. E nessa maioria incluo este sr. Sartre, sim, o mesmo Sartre que vocês conhecem, e, por que não dizer, Malraux, que se acomodaram nas delícias da ocupação de Paris. Foram todos heróis de bistrôs que se negaram a ver a morte da liberdade de viver e de pensar sob o regime soviético, não só o de Stalin, mas de Lenin também.
A REVOLUÇÃO AO VIVO!
Mas temos um outro objetivo; nesta comemoração de 14 anos de liberdade, do fim de um regime que violentou o ser humano, deixou mais de 30 milhões de mortos não só na guerra, mas nos deslocamentos adoidados de populações inteiras que morreram de fome, quero dar um pequeno testemunho vivo, para mim, pessoalmente, histórico, do que vi, ouvi e como presenciei e participei desses acontecimentos como jornalista.
VIMOS TUDO, CONTAMOS TUDO
Eu estava pela manhã ancorando o jornal da Rádio Eldorado quando o golpe explodiu. Tínhamos no estúdio uma televisão transmitindo tudo ao vivo e, na ponta da linha telefônica, o correspondente da Eldorado em Moscou, Luiz Recena, contando pelo celular, o que estava vendo, acotovelado e empurrado no meio do povo que clamava pelo fim da ditadura da fome. Eram minutos dramáticos, pois esperava-se que, a qualquer momento, os tanques avançassem sobre o povo, entre os quais estava, na primeira linha, o nosso corajoso Recena que, me disse depois, em Paris, "estava disposto a ir até o fim, a não recuar". E, conhecendo-o, nós sabíamos que ele jamais recuaria ao ataque dos tanques.
"NÃO ME PEGARAM!"
A um dado momento, tenso, nervoso, suando na estreiteza do estúdio da nossa Eldorado, a única que falava ao vivo de Moscou, perguntei a ele:
"Recena, você não está achando tudo isso muito estranho? Afinal, pela primeira vez, que eu me lembre, estamos transmitindo e vendo, ao vivo, pela televisão uma revolução! E, ainda mais, em plena União Soviética, um país sem a menor liberdade de qualquer tipo, muito menos de imprensa!"
E sua resposta, que ia diretamente para o ar, foi simples e autêntica:
"Eu sei, Tamer, também estamos (ele e seus colegas) estranhando isso, mas até agora ninguém veio me prender ou arrancar meu celular da mão."
E assim continuamos descrevendo tudo para o ouvinte, até a famosa cena de Yeltsin trepado num tanque, sob o aplauso da multidão incontida.
Era a nova Rússia, imprevisível, que surgia do caos econômico e da miséria de um povo que acordava e dormia na fila na eterna espera para comprar qualquer coisa que estivesse à venda. Lembro-me bem de campanha mundial – nós mesmos, na Eldorado, aderimos fervorosamente a ela – pedindo ajuda mundial ao povo russo, perplexo e admirado, que estava passando fome no frio de inverno de 40 graus abaixo de zero. Toneladas de alimentos foram despejadas nos aeroportos russos diante de um povo que, pela primeira vez, via algo que jamais conhecera nos 74 anos de revolução: a solidariedade humana.
Rússia deu certo em só 14 anos(2)
Era o início do governo de Putin, o país estava ainda tonto, perplexo. Resumo:
1 - a máfia, formada pelos próprios ex-comunistas, agora transformados em ávidos capitalistas criminosos, dominava Moscou, matava, roubava, explodia bombas destroçando adversários e quem não queria pagar pela "proteção". Era um fim de mundo, um caos sendo minado pelo medo e pelo terror.
2 - os poucos bancos que haviam sido criados estavam quebrando, havia filas pacientes à porta de quase todos; muitos perderam tudo, o que, no fundo, era pouco pois as notas de rublo não valiam mais nada.
3 - não havia talão de cheque; quem quisesse retirar dinheiro tinha de penar na fila.
4 - Mas, falando em fila, não vi nenhuma outra a não ser em dois lugares: na porta da embaixada americana e na Galeria Lafayete, ao lado do Kremlin. Os principais magazines ocidentais já estavam instalados em Moscou, assim como os grandes supermercados.
Por cautela, levei alguns pacotinhos de bolachas francesas; era para comer nas madrugadas previstas, temendo não ter serviço de hotel, e, para surpresa minha, as encontrei, a mesma marca francesa, em vários supermercados superabastecidos a um preço inferior ao que eu havia pago em Paris.
5 - Também não havia táxi, e qualquer carro particular parava a um sinal e levava ao meu tradutor e a mim, cobrando o que queria pela "corrida..."
6 - a corrupção policial era aberta, generalizada; vi meu tradutor discutir várias vezes com policiais que já o haviam achacado antes. Eram até "velhos conhecidos impunes".
HOTÉIS DE LUXO
Quanto ao meu guia, um líder sindical que havia fugido, às pressas, do Brasil, em 1964, houve algo representativo. Eu estava num hotel quatro-estrelas, creio, ''Marco Polo". Ele nunca entrava, sempre me despedia na porta. Um dia, eu precisava de seu socorro para traduzir um debate na televisão programado para aquela noite, mas ele se negou. Disse que não o deixariam entrar e não queria passar vexame. Insisti muito, prometi pagar mais, pois precisava assistir ao programa; e, muito temeroso, olhando para todos os lados, como quem tivesse medo, foi me seguindo. Quando subimos no elevador e percorremos o luxuoso corredor, com tapetes vermelhos reluzentes, ele, que era comunista convicto, que fugira de Santo André para não ser preso, dizia palavrões, imprecava contra tudo o que via.
O que há, perguntei?
"F. da p.", exclamou. "Era por isso que eles nunca me deixaram entrar aqui nas muitas vezes em que fui tradutor de líderes sindicais brasileiros! Nunca! Sempre me barraram na porta! E agora eu sei por que eles não queriam que eu visse todo esse luxo e nós, lá fora, na fila, comendo aquilo que podia achar!"
Diante de minha surpresa, acrescentou:
"E, olha, Tamer, este hotel era só para o pessoal miúdo, os diretores menores dos sindicatos. Há outros maiores que devem ser ainda mais luxuosos para os mais importantes! Safados, enganões, levaram a gente na conversa de solidariedade operária todos estes anos!!!"
Pensei que estava fazendo jogo de cena para me agradar, mas não. Bufou a noite inteira a não mais parar enquanto traduzia o programa...
E AS VELHINHAS DAS RUAS?
Sim, elas estavam lá, quase chorando para que comprássemos suas rendas, só que, agora, para viver, podiam vender tudo do pouco de que tinham; suas pensões diminutas estavam atrasadas, sofriam, sofriam muito. Falei com muitas, pelo menos dez em vários locais, e as respostas eram sempre as mesmas. Eram pobres, não tinham nada porque nunca tiveram nada. Agora, estavam vendendo bordados que faziam, peças de casa, qualquer coisa para ganhar dinheiro. E ganhavam sempre um pouco sem ter mais necessidade depois de ir para a fila interminável de qualquer coisa que estivesse ainda à venda. Agora, a miséria e a pobreza não estavam mais proibidas.
Naqueles momentos, pensei nos miseráveis de São Paulo, nos vendedores do Viaduto do Chá, nos meninos que mendigam esmolas nos cruzamentos de carros, nas favelas imundas com esgotos a céu aberto, nos que dormem nas ruas, ao abrigo dos viadutos, mesmo aqui perto de casa, e, acreditem, senti que, mesmo sofrendo a humilhação do frio e da pobreza, elas não viviam pior do que os nossos mendigos, das grandes cidades ou dos sertões nordestinos, os nossos miseráveis autorizados por lei a serem pobres e exporem a sua pobreza. (Continua na próxima coluna.)
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