Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 03, 2006

ARNALDO JABOR 2005 foi um ano muito bom

O GLOBO 

 

Ofim de ano é uma ilusão. Não existem os "anos", não há pausa no tempo, o tempo não pára, como cantou o Cazuza. A história quer organizar o tempo, para entendermos nossas vidas em rio, em cachoeira, em fluxo contínuo que leva tudo como uma tsunami, vidas pessoais e políticas, orgasmos e revoluções. No fim do ano, festejamos a ilusão de que há fim e princípio, mas nada acaba e nada começa — anda-se para a frente e para trás, se bem que, neste ano que passou demos um salto para a frente.

O ano que acabou foi bom, porque houve tanta mentira no país, que começamos a odiá-la.

Neste ano, enxergamos nossa verdade interna, graças a um raro, espantoso acontecimento histórico: a confissão crítica de Jefferson, revelando os intestinos da nação, o funcionamento orgânico da corrupção, do clientelismo e da burocracia — a rede incestuosa entre o público e o privado. Jefferson nos mostrou na prática o que Sérgio Buarque analisou em 1936, em "Raízes do Brasil".

Jefferson denunciou nossa ignorância histórica endêmica, nossa desinformação secular. Jefferson exterminou esperanças paralisantes e pudemos ver como é idiota nossa crença em salvações e soluções.

2005 foi um bom ano, porque aprendemos que não há salvador da pátria, seja príncipe ou sapo, seja intelectual ou operário. Aprendemos que a ignorância dos pobres não contém sabedoria alguma e que a cobiça e a fome de poder são mais ativas que juras de moralidade. Aprendemos que os fins não podem justificar os meios, aprendemos que a administração do possível e a competência são muito mais importantes que ideologias populistas. Aprendemos que o presente é mais vital que o futuro e que esquecer as estradas destruídas de hoje, em nome de sonhos utópicos, acaba em buracos e desastres.

O ano de 2005 foi muito importante, porque nos decepcionamos. E aprendemos que a desilusão é o primeiro passo para a sabedoria. Pensem como éramos babacas há um ano. Ficamos mais cultos politicamente, mais espertos. 2005 foi um ano bom porque deixamos de ser otários. Aprendemos que, no Brasil, a burrice e as doenças mentais de políticos são mais maléficas que "o capitalismo desumano". Estamos descobrindo que o problema do Brasil é muito mais endógeno que externo e que nossa melhora só virá depois de uma funda autocrítica e de reformas institucionais e psicológicas. Aprendemos (espero) o que os conservadores sempre souberam: que a marcha das "coisas" tem vida própria e que meia dúzia de homens "especiais e superiores" não podem mudar o mundo. E quando tentam, em geral, dá em fracasso ou tragédia. Podemos no máximo mudar rumos, mas o primeiro passo (essencial) é entrar na Vida Real do país e do mundo que hoje (vamos encarar) é o capitalismo globalizado, indestrutível por voluntarismos e populismos "revolucionários". A propósito, gosto de citar a frase imortal de Woody Allen: "A realidade é dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife...".

Essa decepção que 2005 nos trouxe foi preciosa porque, no Brasil, parece que evoluímos pelas ilusões que perdemos. O Brasil parece ter uma história de costas, em "marcha a ré", evoluindo pelo que deixa de ter e não pelo que ganha. Sinto que o Brasil se descobrirá por subtração, não por soma. Chegaremos a uma idéia de país quando as desilusões chegarem ao ponto zero. Então, ao rés-do-chão, vazios, raspados de qualquer sonho, descobriremos que esse "mínimo" poderá ser o inicio de outro tempo. Não que exista alguma coisa "essencialmente" brasileira, "coisa nossa". Não, mas temos de abolir as realidades falsas, importadas ou não, que os poderes públicos nos impingiram por quatro séculos. Nossa colonização foi feita pelo engano e pelo auto-engano, patrocinados pelos donos do poder, desde a colônia até os dias de hoje. Muito do que aconteceu nas últimas décadas (ou séculos) foi o resultado de influências de fora, de mudanças na economia e na política na Europa ou na América, que nos modernizaram "de tabela". Assim foi com a escravidão, com a República, com o getulismo (a revolução de 30 não seria a mesma se não tivesse havido o crash da Bolsa de NY em 29) e, até recentemente, com ditadura e Guerra Fria. Mesmo agora, com o empuxo da globalização, da tecnologia e da vida online , estamos sendo obrigados a nos modernizar. Mais do que nossos "projetos", mais do que os discursos utópicos, somos filhos do que sobrou entre o invasivo e o desejado. Assim, só pode nos interessar o que fazemos com o que fizeram conosco. Ex: o capital externo expandido e invasor nos anos 70 contraiu a galopante dívida externa, mas criou também o ABC em São Paulo. A estupidez "geiseliana" ergueu as usinas mortas de Angra, mas fez surgir a imensa originalidade política do Lula da primeira fase, antes de ser dominado pelos leninistas sem programa que, agora, coroaram suas trapalhadas destruindo o PT e o governo. Daí, a pergunta: o que falta desaprendermos para chegar à idéia de um país? Como faremos para construir o futuro de uma desilusão?

A decepção que sofremos no ano que passou é a mais importante dos últimos tempos, pois entendemos que só a república reformada, plantada no "Mundo Real", pode nos levar a algum lugar. E o perigo maior de 2006 é que os voluntaristas, populistas e pseudo-revolucionários loucos consigam criar novas mentiras e falsas esperanças que desfaçam a mínima sensatez alcançada nesses anos democráticos.

2006 é um perigo. Se houver regressão populista, pode haver uma desconstrução em nosso rumo que nunca mais se refaça, numa época tão complexa como hoje. Não podemos esquecer nossas decepções.

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