Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 03, 2005

Nova Orleans, Haiti DEMÉTRIO MAGNOLI


COLUNISTA DA FOLHA DE S PAULO

Vocês viram as imagens dos desabrigados que perambulam em Nova Orleans? São, quase todos, negros. Fora as gangues de saqueadores, são idosos, obesos, mulheres e crianças. São os que não têm automóvel particular. São, numa palavra, os pobres.
O caos prossegue, vários dias depois do desastre natural. Não há policiamento, defesa civil, atendimento sanitário, médico e hospitalar.
Helicópteros lançam sacos de comida, que se tornam focos de batalhas campais desesperadas. Explosões de substâncias químicas abalam quarteirões.
Há mais de meio século, durante o bloqueio de Berlim promovido pela URSS, os EUA organizaram a célebre ponte aérea que, durante dez meses, sustentou a metrópole alemã, fornecendo-lhe comida, remédios, combustíveis e até chocolate.
A maior operação logística da história, em tempos de paz, mobilizou todos os aviões de transporte americanos e britânicos na Europa, que realizavam, num dia típico, uma média de uma aterrissagem a cada três minutos em cada um dos três aeroportos de Berlim Ocidental.
Mas esse país não consegue proteger ou retirar os refugiados do estádio Superdome, que disputam alimentos a tapa, sofrem estupros e organizam grupos de autodefesa.
Não existe nada comparável à logística de guerra americana. No Iraque, as colunas blindadas que capturaram Bagdá numa operação de poucos dias estendiam-se por centenas de quilômetros de deserto, enfrentando forças hostis e tempestades de areia.
O país que cumpriu essa missão não é capaz de salvar do inferno seus cidadãos pobres de Nova Orleans.
Nenhuma outra democracia industrial deixaria seus cidadãos tão desamparados diante de um desastre natural.
Desconfio que as cenas de Nova Orleans não ocorreriam nem mesmo em países como o Brasil, a Argentina, o México ou a Coréia do Sul. Elas remetem à situação de falência do poder público típica dos países mais pobres do mundo ou à completa irresponsabilidade de Estados que desprezam a vida das pessoas, como a China e a Rússia.
O governo Bush é, obviamente, o culpado imediato pela tragédia. Mas é preciso enxergar a paisagem inteira.

Serviço público desmontado
Os EUA não sabem socorrer Nova Orleans pelo mesmo motivo que não conseguem imprimir cédulas eleitorais unificadas ou modernizar seu sistema de voto eletrônico.
Desde a administração Ronald Reagan, nos anos 80, o serviço público americano foi meticulosamente desmontado, até se tornar uma montanha de ruínas.
A máquina do Estado renunciou ao propósito de atender à população e, como conseqüência, já não existem as repartições, os burocratas, as rotinas e os procedimentos voltados para responder a emergências civis.
Nos tempos do faroeste, salvavam-se os que tinham armas. Hoje, escapam os que têm dinheiro.
Diante do furacão Katrina, o governo americano só conseguiu alertar os proprietários de automóveis para abandonarem a cidade. Bem depois do desastre, deslocou do Iraque forças militares com a prerrogativa de atirar contra as gangues que agem em liberdade na cidade desamparada.
Nova Orleans é um diagnóstico sobre o sentido de uma vergonhosa opção histórica: os EUA sabem matar, mas não sabem proteger a vida.

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