Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, setembro 06, 2005

China e Índia mudarão o mundo, mas como?


Ana Maria Pacheco Lopes de Almeida

e-agora

Esta vai pra quem está farto da lama nossa de cada dia. Já ouviu falar nos BRIC? É uma representação mais ou menos recente, que junta as iniciais de quatro países-baleia que tenderiam a se tornar potências do século 21: Brasil, Rússia, Índia e China. Quanto a Brasil e Rússia, não sei. Mas os IC – Índia e China – parecem uma boa aposta. A Business Week e o McKinsey Quarterly fazem uma série que o jornal Valor publica, sob o título China e Índia mudarão o mundo, mas como? Há uma certeza: os países asiáticos vão desestruturar setores econômicos, mão-de-obra, empresas e mercados. Assustador, mas fascinante. Boa leitura.




Business Week/Valor (06/09/05)

Novas potências
Países asiáticos vão desestruturar setores econômicos, mão-de-obra, empresas e mercados

Business Week

Pode não ser a visita imperdível na lista de muitos turistas. Mas, para apreciar a ambiciosa visão de Xangai de seu futuro, não há melhor lugar que o Salão de Exibição de Planejamento Urbano, uma estrutura de vidro e metal diante da praça do Povo. O destaque é um modelo em escala - maior que uma quadra de basquete - da metrópole inteira, com arranha-céus, casas, ruas, fábricas e áreas verdes que existirão em 2020. Há torres brancas de plástico projetadas por arquitetos como I.M. Pei e Norman Foster. Há novos distritos industriais, bem como novas linhas de metrô, aeroportos, vias expressas, parques, distritos varejistas, lagos artificiais e campi universitários. A mensagem é clara: Xangai mira bem além de sua era industrial, visando sua ascensão como meca mundial de tecnologia.

É fácil fazer pouco de tais sonhos, qualificando-os como expressão da arrogância de uma bolha econômica - até levarmos em conta os objetivos audaciosos que Xangai já atingiu. A partir de 1990, quando a cidade ainda parecia imobilizada numa "dobra do tempo" socialista, Xangai ergueu suficientes arranha-céus para cobrir Manhattan. Essa é a história da China, onde uma extraordinária capacidade de mobilização de trabalhadores e capital triplicou a renda per capita em uma geração e tirou 300 milhões da pobreza.

Agora, de avião, um pulinho até a Índia. É difícil distinguir que essa é a outra superpotência mundial em ascensão. São abundantes os sinais de extrema pobreza, mesmo nas capitais que sediam muitas empresas. A inexistência de metrôs e a escassez de vias expressas criam um pesadelo viário.

Mas quando visitamos torres de escritórios e centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D) que brotam por toda parte, vemos o milagre. Aqui, os indianos têm papéis importantíssimos na cadeia mundial de inovações. Motorola, Hewlett-Packard, Cisco Systems e outras gigantes agora usam equipes indianas para projetar plataformas de software e deslumbrantes recursos multimídia para aparelhos do futuro. Especialistas em finanças em firmas como B2K, OfficeTiger e Iris processam análises sobre resultados financeiros de empresas listadas em bolsas para clientes de Wall Street. Em 2010, esse tipo de trabalho terceirizado deverá quadruplicar, para US$ 56 bilhões por ano.

Ainda mais fascinante é o ritmo de inovação, à medida que centros de irradiação tecnológica como Bangalore fazem surgir empresas que produzem seus próprios projetos de chips, software e produtos farmacêuticos. "Bangalore é um dos mais empolgantes lugares no mundo", diz Dan Scheinman, vice-presidente de desenvolvimento empresarial da Cisco Systems. Não é só em Bangalore que as empresas indianas estão demonstrando talento com produtos e serviços de alta qualidade a preços baratos - são passagens aéreas a US$ 50, carros de US$ 2.200 e cirurgias cardíacas por uma fração dos custos nos EUA. Analistas vêem o surgimento de multinacionais hipercompetitivas. "Quando elas aprenderem a vender qualidade mundial a preços indianos, poderão competir em qualquer lugar", prevê C.K. Prahalad, guru de administração na Universidade de Michigan.

Poucas vezes a ascensão de dois países relativamente pobres, como Índia e China, foi observada com tanto assombro, esperança e apreensão. A era do pós-guerra viu milagres econômicos no Japão e na Coréia do Sul. Mas nenhum desses dois países era suficientemente populoso para puxar a economia mundial ou mudar as regras do jogo. China e Índia, porém, têm peso e dinamismo para transformar a economia mundial no Século XXI.

De certa forma, até a ascensão dos EUA no Século XIX não se compara ao que ocorre agora. Nunca antes o mundo viu a decolagem simultânea e sustentada de dois países que, juntos, têm um terço da população do planeta. Nas últimas duas décadas, China e Índia vêm crescendo, respectivamente, a espantosos 9,5% e 6% ao ano. Em vista de suas populações jovens, alto nível de poupança e do enorme atraso que precisam eliminar, a maioria dos economistas calcula que os países dispõem de fundamentos para continuar crescendo na faixa de 7% a 8% por décadas.

Salvo um cataclismo, em três décadas a Índia deverá superar a Alemanha como terceira maior economia no mundo. Em meados do século, a China será a número 1, ultrapassando os EUA.

O que torna os dois gigantes particularmente poderosos é que eles se complementam. É acelerada a tendência pela qual a competência técnica e gerencial nos dois países está ficando mais importante que mão-de-obra barata não especializada. A China continuará dominante em manufatura de massa e é um dos poucos países que está injetando bilhões de dólares na construção de fábricas nos setores eletrônico e de indústria pesada. A Índia é uma potência em ascensão em software, design, serviços e indústria de precisão. Isso levanta uma questão provocante: e se as duas nações se fundirem numa gigantesca Chíndia? Ambições políticas e econômicas conflitantes tornam isso improvável. Mas, se suas indústrias efetivamente colaborarem mutuamente, "elas tomarão conta do setor mundial de informática", prevê Navi Radjou, analista da Forrester Research.

Num sentido prático, o yin e yang dessas imensas forças de trabalho já estão convergindo. Graças à internet e à queda dos custos de telecomunicações, multinacionais estão montando seus aparelhos na China com software e circuitos projetados na Índia. À medida que tecnologias de projeto interativo facilitam aperfeiçoar protótipos virtuais em 3-D de qualquer produto, a distância entre os baratos laboratórios indianos e as fábricas chinesas a baixo custo se estreita. Os administradores na vanguarda da nova onda de globalização dizem que o impacto será explosivo. "Em poucos anos, veremos a maioria das empresas desencadeando um enorme surto de produtividade", prevê o CEO da Infosys Technologies, Nandan M. Nilekani.


Poucas vezes a ascensão de dois países relativamente pobres foi observada com tanto assombro


Para os céticos da globalização, porém, o que é bom para para o mundo empresarial dos EUA se traduz em demissões e salários mais baixos para os trabalhadores. Não é de surpreender que o Ocidente esteja sofrendo um "choque do futuro". Cada nova proposta de aquisição empresarial chinesa ou contrato de terceirização com a Índia arranca protesto de políticos americanos. Os instituto de pesquisa e planejamento em Washington pintam cenários sombrios sobre o que isso significa para a liderança mundial dos EUA.

Esse alarmismo é compreensível. Mas os EUA e outras potências consolidadas terão de aprender a abrir espaço para China e Índia. Em quase todas as dimensões (como mercado consumidor, investidores, produtores e usuários de energia e de commodities), os dois países serão os peso-pesados do Século XXI. A crescente economia poderá também repercutir na esfera geopolítica. China e Índia estão defendendo seus interesses mais assertivamente no Oriente Médio e na África, e as Forças Armadas da China logo desafiarão o predomínio americano no Pacífico.

Uma implicação disso é que o equilíbrio de poder em muitas tecnologias deve se deslocar do Ocidente para o Oriente. Uma razão óbvia é que China e Índia formam, juntos, meio milhão de engenheiros e cientistas por ano, contra 60 mil nos EUA. Em áreas biológicas, segundo projeções do McKinsey Global Institute, o número total de jovens pesquisadores nos dois países terá crescido 35%, para 1,6 milhão, em 2008. Essa oferta nos EUA cairá 11%, para 760 mil.

As empresas americanas não estão transferindo pesquisa só porque os cérebros indianos e chineses são jovens, baratos e abundantes. Em muitos casos, esses engenheiros combinam habilidades - domínio das mais recentes ferramentas de software, talento para desenvolver complexos algoritmos e fluência em novas tecnologias multimídia - que superam as de seus colegas americanos. Nas palavras de Scheinman, da Cisco: "Viemos à Índia por custos, ficamos pela qualidade e agora estamos investindo em inovação."

Uma classe de consumidores em ascensão também trará inovações. Na China, este ano, o mercado de carros de passeio deve atingir 3 milhões de unidades, o terceiro maior do mundo. O país já tem a maior base mundial de assinantes de telefonia celular, 350 milhões de pessoas, devendo chegar a 600 milhões em 2009. Em dois anos, a China deverá passar os EUA em domicílios conectados por banda larga à internet. Menos observado é que o mercado consumidor indiano está na mesma trajetória explosiva da China cinco anos atrás. Desde 2000, o número de assinantes de celulares disparou de 5,6 milhões para 55 milhões.

Estudos revelam que as atitudes e aspirações dos jovens chineses e indianos assemelham-se às dos americanos algumas décadas atrás. Na China, é moda entre os novos ricos trocar de celular a cada três meses, diz Josh Li, diretor da Grey em Pequim. Um modelo velho sugere "você não está progredindo na vida nem se mantendo atualizado". Isso significa que esses países serão enormes campos de prova para a próxima geração de aparelhos multimídia e terão papel maior na definição de padrões mundiais.

A despeito das enormes vantagens de que hoje desfrutam, Índia e China não podem dar como certo seu papel de novas superpotências. Hoje, respondem por só 6% do PIB mundial, metade da participação japonesa. E os dois precisam enfrentar a degradação ambiental que é tão evidente quanto a mistura de fumaça e neblina que envolve Xangai e Bombaim e defrontam-se com riscos reais de conflitos sociais, guerra e crise financeira.

Além disso, com a rápida elevação dos salários, especialmente em áreas especializadas, a vantagem da mão-de-obra barata não durará para sempre. Os dois países passarão por ciclos de expansão acelerada seguida de contração brusca. E nenhum dos dois já criou empresas como Samsung, Nokia ou Toyota, que reúnem todas as funções, desenvolvendo, produção e venda de produtos de alta qualidade.

Ambos os países, porém, sobreviveram a crises anteriores e dispõem de imenso potencial. Na China, real desenvolvimento só agora está atingindo 800 milhões de pessoas em áreas rurais, onde a renda anual per capita é de apenas US$ 354. Em áreas fora das principais cidades, os salários são muito baixos, de até apenas US$ 0,45 por hora. "É por isso que a China pode ter mais 20 anos de rápido crescimento", alega Hai Wen, economista da Universidade Pequim.

Mas o potencial indiano de longo prazo pode ser ainda maior. Devido a sua política de um só filho, a população chinesa em idade de trabalhar atingirá o pico em 1 bilhão em 2015. E depois cairá continuamente. A China então precisará prover as necessidades de uma população em envelhecimento que dispõe de limitados benefícios de aposentadoria. A Índia tem quase 500 milhões de pessoas com menos de 19 anos e taxas de fertilidade mais altas. Em meados do século, a Índia deverá ter 1,6 bilhão de habitantes - e 220 milhões de trabalhadores a mais do que a China. Isso pode ser uma fonte de instabilidade, mas é uma grande vantagem para o crescimento, se o governo conseguir prover educação e oportunidades para as massas indianas. Neste momento, Nova Déli está se empenhando em abrir seus setores elétrico, de telecomunicações, imobiliário e de varejo a estrangeiros. Esses setores poderão atrair grandes fluxos de capital. "O ritmo de mudanças institucionais e de liberalização de setores é fenomenal", diz o economista-chefe da consultora Keystone Business Intelligence India, William T. Wilson. "Creio que a Índia tem um modelo melhor do que a China, e com o passar do tempo ultrapassará os chineses em crescimento."


O que torna os dois gigantes particularmente poderosos é que eles se complementam.


Por seu turno, a China ainda não provou ser capaz de ir além da industrialização em marcha forçada. O país direciona enormes investimentos para obras públicas e fábricas, uma fórmula bem-sucedida para crescimento rápido e criação de empregos. Mas, por sua enorme produção industrial, a China é surpreendente fraca em inovação. Substanciais 57% das exportações são de fábricas criadas por investimento estrangeiro, e a China mostra-se abaixo do desejável em software, mesmo com 35 faculdades de computação e planos de formar 200 mil engenheiros de software por ano. Não se trata de falta de gênios. O laboratório de P&D da Microsoft em Pequim, por exemplo, com seus 180 engenheiros, é uma das fontes de inovação mais produtivas do mundo em processamento de imagens e simulação de linguagens.

Embora os grandes institutos de P&D chineses dirigidos pelo Estado estejam perto do que há de mais avançado em nível teórico, eles ainda não produziram muitos progressos importantes em termos comerciais. "A China tem muita capacidade", diz o executivo-chefe de Tecnologia da Microsoft, Craig Mundie. "Mas, quando olhamos mais de perto, não vemos muita colaboração com a indústria." A ausência de proteção à propriedade intelectual e o forte papel do Estado em estabelecer suas próprias companhias de tecnologia, fazem com que muitas outras multinacionais receiem iniciar um esforço de P&D sério na China.

A China é também muito perdulária. Sua taxa de crescimento de 9,5% em 2004 revela-se menos notável quando consideramos que US$ 850 bilhões - metade do PIB - foram injetados em setores já "inundados", como aço e veículos. As fábricas chinesas queimam combustível com bem menos eficiência que no Ocidente, e mais de 20% dos empréstimos bancários são podres. Dois terços das 1.300 empresas chinesas com ações em bolsa não recuperam seu verdadeiro custo de capital, estima o presidente do Instituto Nacional de Contabilidade de Pequim, Chen Xiaoyue. "Construímos as rodovias e distritos industriais, mas sacrificamos muita coisa", diz Chen.

Já a Índia teve de se desenvolver em meio a escassez. Os indianos recebem pouco investimento estrangeiro e não têm margem para desperdiçar combustível e materiais como a China. Além disso, a Índia tem instituições jurídicas ocidentais, um mercado acionário moderno e bancos e empresas privados. Por isso, os indianos são mais eficientes no uso de capital. Das principais empresas em bolsa nos dois países, as indianas conseguiram maior retorno sobre o capital e investiram mais nos últimos cinco anos em diversos setores - de automóveis a produtos alimentícios. A empresa indiana média teve retorno de 16,7% sobre o capital em 2004, contra 12,8% na China.

A questão é se a Índia conseguirá replicar o que a China conquistou em industrialização em massa. O setor de serviços de informática indiano, por mais bem-sucedido, emprega menos de 1 milhão de pessoas. Mas 200 milhões subsistem com US$ 1 por dia ou menos. A indústria para exportação é uma das maiores esperanças de a Índia gerar milhões de novos empregos.

A Índia tem sofisticado know-how industrial. A Tata Steel é uma das siderúrgicas mais eficientes do mundo. O país orgulha-se de seus fabricantes de autopeças de alta precisão. O forte da Índia é produção em pequenos lotes de produtos de alto valor que incorporam muito esforço de engenharia, como geradores de eletricidade.

O que retarda a Índia são as regras burocráticas, leis trabalhistas rígidas e sua incapacidade de construir infra-estrutura em rapidez suficiente. Há sinais animadores. A Nokia está construindo um importante campus para fabricar telefones celulares em Madras, e a Pohang Iron & Steel, da Coréia do Sul planeja erguer um complexo de US$ 12 bilhões até 2016 no Estado de Orissa. Mas a Índia levará muitos anos para construir as rodovias, usinas de eletricidade e aeroportos necessários para rivalizar com a China em termos de manufatura de massa. Com Pequim agora dedicando-se ao desenvolvimento de software e comprometendo-se com a proteção de direitos de propriedade intelectual, alguns indianos estão nervosos diante da possibilidade de que atividades de design serão transferidas para a China para estarem próximas das fábricas. "A questão é se a China conseguirá passar de manufatura para serviços mais rapidamente do que nós venhamos a conseguir solucionar nossos gargalos em infra-estrutura", diz Aravind Melligeri, presidente da QuEST, com sede em Bangalore, cujos 700 engenheiros projetam turbinas a gás, motores aeronáuticos e equipamentos médicos para a GE e outros clientes.

Seja como a disputa venha a se desenrolar, o mundo empresarial americano está condenado a nela se engajar - e profundamente. A Motorola exemplifica o valor obtido em sua alavancagem dos dois países para baixar custos e acelerar desenvolvimentos. A maior parte de seu hardware é montado e parcialmente projetado na China. Seu centro de P&D em Bangalore cria cerca de 40% do software contido em seus novos telefones. A equipe em Bangalore desenvolveu o software multimídia e as interfaces para usuário do Razr, um sucesso em telefones celulares.

Companhias como a Motorola têm consciência de que precisam ser bem-sucedidas na China e na Índia em muitos níveis, simultaneamente, para permanecer competitivas. Isso exige estratégias para conquistar consumidores, recrutar e administrar P&D e talentos profissionais e demonstrar habilidade nas decisões de terceirização e escolha de fábricas fornecedoras. "Ao longo dos próximos anos, veremos um profundo fosso se abrindo entre companhias", prevê Jim Hemerling, que dirige a unidade em Xangai do Boston Consulting Group. "[O fosso se abrirá] entre aqueles que percebem o que está ocorrendo e estão integralmente mobilizados na China e na Índia, e aqueles que ainda estão analisando".

Nas próximas décadas, a China e a Índia desestruturarão setores econômicos, contingentes de mão-de-obra, companhias e mercados de tais maneiras que nós hoje mal começamos a antever. A turbulência porá à prova o comprometimento dos EUA para com o sistema de comércio mundial, e abalará sua confiança. "Cabe aos americanos administrar suas próprias expectativas em relação a China e Índia como ameaça ou oportunidade", diz Kenichi Ohmae, um estrategista empresarial. "Os EUA deveriam conservar sua mente aberta, como demonstrou a Europa 100 anos atrás". A maneira como esses gigantes asiáticos irão se integrar ao restante do mundo modelará, em larga medida, a economia mundial do Século XXI.

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