23.02.2005 | Quis o destino que a chegada do Exército brasileiro ao Pará, em operação contra os conflitos agrários, ocorresse na mesma semana dos 60 anos da tomada de Monte Castelo. No Rio, para celebrar a vitória da FEB na Segunda Guerra, a batalha histórica da Itália foi encenada no meio da cidade – não por atores, mas pelos próprios militares. Na região de Anapu, onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada, o desembarque dos soldados foi mais patético, porque ali o teatro era real. Num momento em que o Exército poderia ser bastante útil ao país, as cenas dessas pantomimas militares são o melhor símbolo da desorientação do governo sobre o que fazer com a Amazônia.
A comemoração dos 60 anos de Monte Castelo é um ato importante, sobretudo pela presença emocionante dos velhos ex-combatentes que ainda estão vivos e firmes. Mas a encenação montada para reproduzir a batalha, com uma tropa de verdade constrangida a rastejar no meio da rua e simular explosões de festim, fez soar o alarme do ridículo. Pelo simples fato de que logo ali, um pouco mais ao norte, existem quase 5 milhões de quilômetros quadrados de território brasileiro precisando de brasileiros que possam defendê-lo – a sério – da barbárie.
As cenas da chegada de pelotões do Exército a Anapu também deixaram claro, logo de cara, que aquela operação não era para valer. Soldados se atirando de um helicóptero e rastejando num campinho de futebol, em posição de ataque, como se estivessem em Monte Castelo a poucos metros das baterias alemãs. Puro show para as câmeras de TV. O alarme do ridículo já começa a ficar rouco.
A convocação do Exército pelo governo federal para a ocupação no Pará não é séria porque foi feita com embalagem de intervenção policial no conflito agrário. Sabe-se como termina esse tipo de ação, até pelas experiências nos casos de violência urbana: o Exército ajuda os governos a espalhar uma sensação de proteção e logo depois volta para o quartel, porque não pode se transformar em polícia do dia para a noite. Enquanto isso, continuam lá, de um lado, os quase 5 milhões de quilômetros quadrados ao Deus-dará, e de outro, o poderio das Forças Armadas totalmente ocioso – desde que as guerras e as conspirações saíram de moda.
Além da encenação com soldados bancando répteis em campinho de futebol, o governo adotou uma outra medida após o assassinato da missionária, esta no campo legal. Criou uma reserva ecológica de mais de 3 milhões de hectares, onde fica proibido tocar na floresta, e embargou o corte de árvores em mais 8 milhões de hectares, ao longo da BR-163. Na mesma canetada, criou mais alguns parques de menor porte. O que alguém precisava soprar ao presidente da República é que, neste Brasil grande, não faltam parques, reservas, nem unidades de conservação ecológica. Ao contrário: sobram, e ninguém sabe direito o que fazer com eles.
O Brasil é o país dos parques de papel. São exatamente como esses que Lula acaba de criar, que passam a existir a partir de uma canetada e de alguns gráficos em jornais, mas que ao nível do chão, ali no meio do cipoal, ninguém é capaz de ligar o nome à pessoa. No máximo consegue-se demarcá-los (em processos que levam anos), o que muitas vezes só serve para que ecologistas bissextos passem por ali e denunciem que a floresta continua sendo devastada, estuprada etc. etc. Mas agora é tudo “dentro do parque” – o que, sem dúvida, dá um sabor bem mais amargo à denúncia.
Se a resposta do governo ao assassinato da irmã Dorothy é essa nova safra de parques de papel, o crime terá compensado. O que a floresta amazônica precisaria, antes de mais nada, era de um zoneamento sério para suas atividades econômicas. É um trabalho difícil e minucioso, mas nada é fácil quando se trata de civilizar a Amazônia. Uma experiência desse tipo foi realizada em Rondônia no fim dos anos 80 e, mal ou bem, reduziu as taxas de destruição daquele que era o estado mais devastado da região.
De que adianta embargar os cortes de árvores em uma imensidão de 8 milhões de hectares (quase o tamanho de Portugal)? Por quanto tempo será possível manter essa tranca, e como fazer para resguardá-la? Quantos Ibamas seriam necessários para que, a cada naco gigante desses de floresta ameaçada, se resolvesse colocar todo mundo para correr (madeireiros, boiadeiros, índios, caboclos, até o mais miserável dos ribeirinhos)? A economia amazônica é um pouco mais complexa do que querem os burocratas. Sem um mínimo de planejamento territorial, numa terra onde o Estado leva uma vida para chegar, má fé e sobrevivência acabam misturando-se no mesmo e incontrolável faroeste.
Por ironia, o próprio Exército já iniciou vários projetos visando esse tipo de ordenação territorial-econômica-ecológica. Mas os governos sempre negam-lhe o dinheiro suficiente – que nem é tanto assim. Seria uma das missões mais nobres dos militares na história brasileira: ajudar a ordenar a ocupação da Amazônia e ir a campo zelar por ela. Não como polícia para caçar pistoleiro, mas como avalista da ocupação civilizada da metade mais problemática (e potencialmente mais rica) do território nacional.
Ao que tudo indica, porém, o governo prefere mesmo o Exército como protagonista de videoclipe na selva.
Entrevista:O Estado inteligente
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