Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

As elites de Lula Carlos Alberto Sardenberg


Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2005

Não é preciso procurar muito nas páginas do governo para encontrar declarações do presidente Lula e de seus ministros petistas garantindo que: a corrupção acabou; o PT não rouba e não deixa roubar; a violência no campo está acabando, assim como nas áreas indígenas e de proteção ambiental; a impunidade acabou; a injustiça social está com os dias contados; as elites não mandam mais; chegou a vez dos pobres.

Alguns dirão que se trata de marketing: repetir declarações de modo a mostrar um presidente do bem e dos pobres, muito diferente de FHC, de cujo partido, PSDB, sairá o principal adversário de Lula na eleição presidencial. O discurso social teria ainda o especial propósito de permitir ao governo petista se esquivar das comparações entre a política econômica atual e a anterior.

Há verdade nisso. O PT certamente tem em curso uma estratégia eleitoral. Mas não decorre daí que sejam todos cínicos. Lula e seus ministros petistas de fato acreditam ser portadores da boa nova. Todos? Bom, digamos, muitos, mas a turma, no geral, se move conforme a idéia de que as elites perderam e os pobres ganharam. Mais que isso: basta examinar qualquer documento do PT, sobre qualquer tema, para encontrar a tese de que o principal problema é que as elites mandam com o propósito exclusivo de manter seus privilégios e excluir os pobres.

Tome-se um exemplo aparentemente isento de qualquer contaminação ideológica: por que os computadores são tão caros? Respostas: 1) Porque os fabricantes (capitalistas, multinacionais) não querem vender computador barato; 2) porque os ricos não gostam que os pobres estudem, como disse Lula.

Nos temas econômicos, o raciocínio também era o mesmo. Por que os juros são tão altos? Ora, porque os bancos gostam de ganhar dinheiro mole emprestando ao governo. Idem na administração pública: por que há serviços tão ineficientes? Porque as elites não querem atender os pobres, só querem roubar.

Nos temas com forte conteúdo ideológico, então, a tese é facílima: por que "nunca" se fez a reforma agrária e por que havia tanta violência no campo? Porque as elites usurparam a terra para fazer o agronegócio de exportação e de produtos para os ricos. Sendo o presidente representante das elites, a coisa não podia andar.

Ora, se o presidente agora é do povo, o problema central, de vontade e decisão política, está resolvido. Lula cansou de dizer que acabaria com os conflitos no campo sem chamar a polícia. Distribuiria tanta terra e tão rapidamente que logo não haveria um sem-terra sequer no País.

Passados dois anos de governo, o MST acelerou as ocupações, há conflitos.

No Pará, a irmã Dorothy é assassinada - e se verifica que a área onde ela atuava continua conflagrada. Tanto que o governo se apressa e lança o "pacote verde", série de medidas legais e administrativas para ordenar e fazer justiça na região. E manda o Exército para lá. Ora, por que demorou tanto para fazer isso? Teria faltado vontade política? Ou, quem sabe, o problema é muito mais complexo e não cabe na simples oposição elite canalha contra pobres?

O presidente Lula não admite esta última possibilidade. Acredita que o assassinato da irmã seja uma reação à ação justiceira do governo nessa região. Ou seja, as elites bandidas prejudicadas foram à forra. Se isso é verdade, resulta que o governo falha em pelo menos uma política, a de segurança, pois os bandidos continuam agindo. Mas a tese sugere uma pergunta reversa: no governo anterior, a violência também não seria uma reação à ação pública?

Assim, desconstruído, o conjunto da argumentação petista leva a possibilidades contraditórias: ou as boas políticas públicas já vinham sendo aplicadas há tempos - e os bandidos reagem contra elas hoje, como ontem -, ou não havia e não há agora política nenhuma, sendo a violência resultado da ausência do Estado.

Nem uma, nem outra, é claro.

Combinar preservação e desenvolvimento, em área onde a propriedade da terra é juridicamente controvertida, não pode ser uma simples questão de elite versus povo. Tanto é assim que as medidas do "pacote verde" anunciadas na quinta-feira estavam sendo examinadas há tempos pelo governo, o atual e o anterior, e, se não haviam sido tomadas até aqui, só pode ser por uma combinação de ineficiência administrativa com, sobretudo, dúvidas quanto à sua legalidade e eficácia.

Também está claro, por outro lado, que não se parte do nada. Muita coisa vem sendo feita ali, há bastante tempo.

De maneira que a visão histórica que o PT tem do Brasil (e do mundo) vai sendo contestada pela realidade e pela prática do governo. Alguns sacam as lições, outros não. O próprio presidente parece sacar algumas, outras não.

Por exemplo, Lula certamente já não acredita que juro alto seja coisa da elite, nem acha que o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central sejam representantes dos banqueiros no governo.

Também já deve ter percebido que não é tão simples fazer reforma agrária.

Mas, se acredita no "pacote verde", Lula certamente ainda não se deu conta de algo importante para qualquer governante: que o governo pode pouco, que o Estado não é a solução para tudo e freqüentemente é o problema, que políticas públicas não funcionam se não tiverem sustentação na sociedade e, sim, senhor, nos variados interesses privados.

O governo reagiu ao assassinato da irmã com o reflexo condicionado de qualquer governo. Reunião e anúncio de medidas legais e administrativas "imediatas". A diferença é que o governo petista coloca mais ministros na reunião - 11, no caso -, demora-se mais tempo nela - três horas e meia - e promete mais coisas, na expectativa de criar fatos positivos.

Ou seja, "o pacote verde" está mais perto não do fracasso, mas de morrer pelo caminho, pela mesma circunstância do atraso de outras políticas: ainda não se encontrou a fórmula correta.

É isso, não é fácil. A propósito, depois de dois anos, o governo acha que está perto da solução do computador barato. Os burocratas já perceberam que não são as elites que não querem vendê-lo, mas que o problema é imposto, escala de produção, garantia de mercado, financiamento, esses detalhes que impedem os fabricantes de fazer o que adorariam: vender milhões de máquinas a preço de banana.

Os "detalhes" ainda não estão resolvidos porque o governo quer enquadrar tudo. A venda dos tais computadores já foi anunciada e adiada várias vezes.

Sobre a ineficiência de serviços públicos, ainda não perceberam que o problema pode ser esse mesmo, do serviço público. Por exemplo, ainda não deram a devida atenção ao seguinte ponto: o melhor parque ecológico do País, o de Foz do Iguaçu, tem gestão privada.

Mas também não é fácil mudar de idéia. Mesmo porque muitos dos problemas nacionais são, de fato, culpa das elites, especialmente daquelas que vivem das tetas do Estado, ou ocupando a administração pública, ou permanecendo no setor privado, como empresários, mas à custa dos subsídios variados. O problema é que muitas dessas elites estão com Lula desde criancinhas.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Home page: www.sardenberg.com.br

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