Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 20, 2005

A Torre de Babel, as línguas e a diplomacia Celso Lafer


A Torre de Babel é uma das grandes metáforas do livro do Gênesis. Lida com um paradoxo: o da afirmação inicial da unidade do gênero humano, servido por uma mesma língua, tendo como ascendente comum Noé e a subseqüente dispersão dos seres humanos sobre toda a face da Terra, falando diversas línguas e se dividindo em distintas nações. Confundir "a linguagem de todos os habitantes da Terra" foi a reação de Deus à construção da torre e o nome Babel é explicado pela raiz do verbo hebraico "bll", confundir. A incomunicabilidade é, assim, um dos grandes temas da vida internacional, de acordo com a Bíblia, desde o princípio das coisas.
A tradução, que pressupõe o conhecimento de outras línguas além da própria, é o caminho para superar a incomunicabilidade inerente à pluralidade multicultural da condição humana. Antes da existência dos tradutores profissionais e, por assim dizer, desde a Torre de Babel, sempre se traduziu e por essa razão os viajantes, os mercadores, os embaixadores eram bilíngües ou poliglotas.
Traduzir permite o alargamento do horizonte intelectual pelo acesso que oferece ao repertório de outras culturas. "Saber muitas línguas é ser muitas vezes homem", diz o provérbio português. É por essa razão que o conhecimento de outras línguas em nosso país é uma exigência normal do exame vestibular e um usual pré-requisito para o ingresso nos cursos de pós-graduação.
A tradução instiga a descoberta do potencial latente na própria língua. Tobias Barreto dá-nos um exemplo ao mencionar uma observação de Emerson sobre o escritor como um patinador, que vai, em parte, para onde quer ir, em parte, para onde o levam os seus patins. Acrescenta a seguir que, não compreendendo bem, como nordestino, o que é patinar no gelo, reformula a imagem dizendo que o escritor é como o canoeiro dos nossos rios: "Arriba em parte, aonde pretende arribar, e em parte aonde lhe permite a força da correnteza." É por isso que traduzir é compreender, pressuposto para a convivência amistosa e para a "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade", um dos princípios que constitucionalmente regem as relações internacionais do Brasil (Constituição federal, artigo 4, IX).
Recordo, neste contexto, a distinção que fez Fernando Pessoa entre a dimensão internacional e a universal de uma língua. A dimensão internacional tem entre os seus atributos a difusão e a capacidade de atender aos requisitos da comunicação no mundo. O latim ou o francês foram línguas internacionais. No mundo contemporâneo, registra Pessoa, a língua internacional é o inglês, dimensão sustentada pela universalidade da sua literatura e pelos desdobramentos do fato de ser uma língua imperial. Para Pessoa, o atributo de uma língua universal é a sua capacidade "de responder na íntegra a todas as formas de expressão possíveis" e, por isso, poder "espelhar com fidelidade, através da tradução, a expressão de outras línguas". O português não é, diz o grande poeta de Mensagem, uma língua internacional, mas é uma língua universal.
A universalidade do português nos ajuda a ter uma visão ampla das coisas do mundo, mas diplomaticamente esta visão precisa estar instrumentada pelo domínio de outras línguas, a começar pelo inglês como língua internacional. Na condução da política externa, que traduz necessidades internas em possibilidades externas, "quem não se comunica se trumbica", como dizia o Chacrinha.
O domínio de línguas é condição do multilateralismo. Sem o domínio do inglês o ministro Amorim não teria tido as condições que teve para atuar na montagem, na Organização Mundial do Comércio (OMC), do G-20. Sem o conhecimento do inglês o secretário-geral Pinheiro Guimarães não poderia, como cônsul que foi em Boston, cuidar efetivamente da proteção dos nacionais no exterior.
O Instituto Rio Branco sempre foi um centro de excelência. É hoje um curso de pós-graduação - um mestrado profissionalizante. Nele só podem ingressar os que têm curso universitário completo. Não há nenhuma razão consistente para que a prova de inglês não seja uma prova eliminatória, como são as provas de língua no acesso aos cursos de pós-graduação na USP. Além de alargar horizontes, o prévio domínio de língua estrangeira é exigência óbvia de um mestrado profissionalizante, como o do Instituto Rio Branco, pois o diplomata precisa superar os desafios da Torre de Babel.
As justificativas oficiais e oficiosas do Itamaraty para a mudança de critério não são convincentes. O ensino do inglês no curso médio e a profusão dos cursos de inglês no País inteiro, em resposta à necessidade do conhecimento desta língua para o exercício de tantas atividades profissionais, não fazem do seu domínio no Brasil contemporâneo um privilégio aristocrático, restrito a filhos de diplomatas ou aos "bem-nascidos" em geral. Também não exigem o excepcional autodidatismo de Tobias Barreto, que apenas se valeu de um dicionário e de uma gramática para apreender o alemão. O argumento dos atuais responsáveis pelo Itamaraty é o do nivelamento por baixo, que caracteriza os excessos do igualitarismo. Exprime a desqualificação do conhecimento, da qual é também uma expressão a proposta da reforma universitária. É uma manifestação da aversão à cultura, à palavra e à ciência, ou seja, da propensão "misologocrática" do governo do PT, para recorrer ao neologismo de Roberto Romano. Nesta toada, o Brasil, em vez de ter uma diplomacia de qualidade, acabará, por obra de um laxismo populista, tendo uma diplomacia dos piores, e não a dos melhores. Em bom português: precisava mais essa?

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso

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