Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

no mínimo Augusto Nunes O frevo vai ser animado

Augusto Nunes

O frevo vai ser animado


19.02.2005 | Surpreendido com a vitória de Severino Cavalcanti, Lula tentou isolar a bola com um tremendo chute de bico: “Quem perdeu foi o PT”, fantasiou. “O governo não disputou a eleição”, delirou o homem que horas antes enviara ao Congresso uma tropa de ministros, incumbidos de assegurar a chegada de Luiz Eduardo Greenhalgh à presidência da Câmara. Favorecido pelas circunstâncias – em viagem ao Exterior, o chefe e técnico do time nem acompanhara o jogo à beira do gramado –, agarrou-se ao raciocínio dos treinadores espertos quando acuados por jornalistas: “Eu ganhei, nós empatamos, eles perderam”.

O rosto vincado traía a aflição, mas Lula não perdeu a pose. Recuperado do impacto, gingou o corpo e, com a destreza de um Garrincha, saiu pela direita. “O Severino sempre votou com o governo nas votações mais importantes”, afirmou. Não especificou que votações teriam sido. Dois dias depois, ao recepcionar no Palácio do Planalto o novo chefe do Legislativo, Lula forneceu a frase que serviria de legenda para fotos do aperto de mãos entre os conterrâneos: “Vamos mostrar a eles a força de Pernambuco”, sorriu o anfitrião.

As trajetórias dos dois pernambucanos exibem semelhanças e pontos comuns que vão além da origem geográfica. Filhos de famílias pobres, ambos viveram a infância em cidades castigadas por seculares carências nordestinas. Compelidos a migrar para São Paulo, usaram meios de transporte distintos mas igualmente desconfortáveis. Lula deixou Garanhuns num caminhão pau-de-arara. Severino embarcou num ita, embarcação sem qualquer parentesco com transatlânticos.

Para sobreviver na metrópole, ambos suaram em trabalhos duros e mal remunerados. Lula não voltaria mais para o agreste pernambucano. Graças às qualidades esbanjadas como dirigente metalúrgico no ABC, não demorou a ganhar notoriedade suficiente para fazer de São Paulo sua pátria política. Severino voltou a João Alfredo decidido a começar na cidade natal a carreira política. Elegeu-se prefeito em 1964, colecionou mandatos na Assembléia Legislativa entre 1968 e 1994 e, no ano seguinte, tornou-se deputado federal. “Nesse tempo todo, nunca deixei de ser sindicalista”, informa. “Sou presidente perpétuo do sindicato dos deputados.” Sobretudo por isso, acaba de chegar lá. Como Lula.

E sem diploma universitário, sempre como Lula. Não se constrange quando derrapa no português. “Falo a língua do povo, como nosso presidente”, argumenta. Também chegado a discursos de improviso, coleciona gafes intrigantes. Na primeira entrevista coletiva, referiu-se três vezes ao atual chefe de governo como “presidente Dutra”. Lula não pode queixar-se. Há dias, chamou de “companheiro Menem” o presidente argentino Nestor Kirchner.

Não se considera ultraconservador, como vive proclamando a imprensa. “Sou apenas católico roxo”, define-se. “Tudo o que digo já foi dito pelo Papa.” Faz sentido. É inimigo militante do aborto, estigmatizado por João Paulo II. Acha “uma indecência essa história de homem com homem e mulher com mulher”: para Severino, “casamento é macho com fêmea”. O Papa concorda.

Em 1980, comandou em Pernambuco a campanha pela expulsão do padre italiano Vito Miracapillo, que se recusara a celebrar uma missa encomendada pelos generais no poder. Alega que os tempos eram outros. “Quem tem idéia fixa é doido”, disse depois do encontro com Lula. “E doido não pode chegar a lugar nenhum.” Hoje ele talvez topasse receber uma hóstia das mãos de Miracapillo.

Lula e Severino poderão acertar os ponteiros sem grandes sobressaltos, muito menos crises institucionais. Filiado ao PP, ingrediente da geléia partidária que o Planalto batizou de “base aliada”, o presidente da Câmara avisou que não pretende fomentar turbulências. Mas tanto Lula quanto os ministros terão de encontrar mais espaços na agenda e, sobretudo, verbas. Severino quer que os companheiros deputados, sem discriminações, sejam recebidos regularmente por figurões habitualmente arredios. Quer que cheguem efetivamente aos pedintes as verbas que o orçamento da União promete e não entrega.

Quer, sobretudo, melhorar o vidão da turma do seu sindicato. Por enquanto, exige aumento de salário, gabinetes espaçosos e uma frota de 500 carros. Depois cuidará das demais carências. Aos 76 anos, o que Severino busca é a simpatia e a gratidão dos colegas. Para garanti-las, não o preocupa o risco de transformar-se, aos olhos do Brasil decente, no pior presidente da Câmara de todos os tempos.

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