Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 16, 2009

Tempero verde no feijão Gaudêncio Torquato



Um dos mais belos espetáculos da natureza pode ser visto na Região Norte do País. Ali, onde ocupam lugar a maior bacia hidrográfica e 33% das florestas tropicais do planeta, o Rio Amazonas trava diariamente uma batalha contra o Oceano Atlântico. De tão caudaloso, o Amazonas consegue que sua foz, ao contrário de outros rios, empurre a água do mar por muitos quilômetros. Mas o oceano espera sua vez. Na fase de Lua Nova, vence a resistência do rio e reverte o movimento. O choque entre as águas forma ondas de até cinco metros, que avançam Amazonas adentro, derrubando árvores e até modificando o leito do rio. O fenômeno chama-se pororoca e é mais intenso entre janeiro e maio. Pois bem, no início de 2010 é bem provável que o País comece a ver uma pororoca diferente, nascendo naquela paisagem e se espraiando pelos estuários rasos dos rios de todos os Estados, sob o nome de Marina. O fenômeno resultará do encontro entre o rio da senadora Marina Silva e as águas dos mares do Sul e Sudeste, canalizadas pelos dois nomes - da situação e da oposição - que disputarão o pleito presidencial.

A eventual candidatura da política acreana à Presidência da República pelo Partido Verde (PV), por conta do simbolismo que seu perfil expressa, pode vir a ser o fato novo capaz de alterar o leito da campanha presidencial, quebrando a polarização entre os candidatos da situação e da oposição, Dilma Rousseff e José Serra ou Aécio Neves. Marina abriria o leque de ofertas, entronizando no mastro central do País a bandeira da sustentabilidade ambiental e da economia verde, cujo apelo é particularmente forte em parcelas de classes médias de centros urbanos mais desenvolvidos, setores culturais e artísticos, núcleos de formação de opinião e contingentes jovens, avessos aos mantras bolorentos da política. Os efeitos da participação da senadora no palco eleitoral podem ser avaliados sob as perspectivas da estética, da semântica e da movimentação partidária. Sob qualquer prisma, sua candidatura causará impacto, considerando que é carismática e intérprete, seguramente a mais importante do País, do conceito do desenvolvimento sustentável de Nação.

A começar pelo plano estético e fundo histórico, emergirá na paisagem uma figurinha frágil, com história pontuada de dores e sofrimento, sobrevivente de catástrofes ambientais, eis que superou doença neurológica provocada pela contaminação de metais pesados. Carrega um drama que mexe com o coração e a cabeça das pessoas. Emoção e razão se juntam na vida dessa filha de seringueiros, que só aprendeu a ler aos 14 anos, ficou órfã de mãe aos 16, trabalhou como empregada doméstica e sonhou ser freira. Diferentemente de Lula, que também veio do andar de baixo da pirâmide social, frequentou os bancos universitários, formando-se em História. Abrigando-se nos movimentos sociais, galgou ao patamar da política, no Acre, exercendo os cargos de vereadora e deputada estadual. Hoje mais parece um corpo estranho no Senado, pela carga asséptica que denota na expressão e nas atitudes. A aparência de água cristalina espelhada por Marina se acentua nestes tempos de lamaçal político. Se a percepção estética é a primeira a chamar a atenção das massas, seu porte simples e despojado será um diferencial em relação a Dilma, bem mais composta e cosmetizada. Com linguagem suave e menos bombástica do que a ex-senadora Heloísa Helena, não parece tão improvisada e esportiva como a alagoana, sempre vista com a farda da camiseta branca e calça jeans.

Na perspectiva semântica, ouviremos a tônica de que "a defesa do meio ambiente deve permear os aspectos da vida econômica, política e social, e sua preservação tem de estar ligada à dinâmica do desenvolvimento". A mensagem é de pouca compreensão para as massas? Sim. Marina Silva, com a feição de mulher sofrida, alcançará melhor resultado nos segmentos médios, urbanos e racionais. São estes que captam melhor a chama futurista do discurso sobre preservação do meio ambiente e desenvolvimento com sustentabilidade. As massas, por sua vez, clamam por demandas imediatas e materiais: dinheiro no bolso, casa própria, alimento barato, transporte rápido, serviços de saúde acessíveis, etc. Com o eixo da sustentabilidade ambiental, que já pontua a linguagem de mandatários importantes como Barack Obama, a mensageira de vida melhor põe tempero verde no feijão nosso de todo dia. Identifica-se, assim, com o salto civilizatório. O bordão preservacionista, vale lembrar, alimenta o discurso da social-democracia em vastos rincões mundiais. No Brasil, esse tempero de sabor silvestre tende a engrossar o caldo de todas as classes.

Quanto à operação político-eleitoral, a pororoca Marina Silva deverá provocar ondas que impactarão alianças políticas nas esferas federal e estadual, a começar por São Paulo, onde Lula pretende apresentar Ciro Gomes como candidato do PT ao governo. Se Marina confirmar a candidatura, o deputado do PSB garante que entrará no páreo. Qual é sua lógica? Empurrar a campanha para o segundo turno. Se ele conseguir 10% dos votos e Marina mais 10%, a soma de ambos poderá ser decisiva na segunda rodada. Mas há um detalhe: a colheita de Marina entra mais na seara de Dilma do que na roça de Serra. No Rio de Janeiro, Fernando Gabeira é outra peça a ser mexida no tabuleiro verde. Pode escolher entre o Senado e o governo. E nos outros Estados, com quem o PV fará aliança? O fato é que em 2010 a cor verde deverá colorir os palanques, ao lado da cor vermelha (petista) e azul/amarela (tucanos), e eventualmente a cor vermelha/amarela do PSB. Mas a simbologia amazônica será o destaque. Pascal lapidou a frase: "O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante."

Marina Silva é a própria imagem do caniço pensante. Sua candidatura é um compromisso com ideias. Pode até faltar-lhe estrutura de campanha. Sobrará uma visão altaneira da vida como deve ser vivida. Se o recado for dado, isso lhe bastará. 

Arquivo do blog