O poder do sussurro
As cantoras de voz pequena provam que não é preciso
se esgoelar para tirar o melhor de uma música
Sérgio Martins
No canto lírico, o termo "voz pequena" refere-se aos artistas de menor volume e potência sonoros. O que não significa menor qualidade técnica: a meio-soprano italiana Cecilia Bartoli, por exemplo, tem uma voz diminuta, porém infinitamente expressiva. Se a voz poderosa deixou de ser uma exigência absoluta da ópera, em que o canto tem de se sobrepor à orquestra, isso é tanto mais verdade em outros gêneros. Ao longo do século XX, microfones e mesas de som permitiram que cantores que não conseguiam cha-coalhar as vidraças ao soltar a voz pudessem se expressar sem ser soterrados pelos instrumentos. Abriu-se o campo para gêneros que valorizaram a voz mínima, como a bossa nova e, na França, a chanson (tradição hoje encampada pelos sussurros sensuais da primeira-dama Carla Bruni). O tamanho da voz tornou-se um valor relativo, sujeito a modas e estilos. A americana Billie Holiday, com seus registros agudos e longos, soa como uma grande voz comparada às cantoras atuais (incluindo imitadoras como Madeleine Peyroux). Mas, em seu tempo, era considerada uma voz pequena – as contemporâneas Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald tinham alcance bem maior. "Billie Holiday anasalava muito, mas imprimia uma dramaticidade sem igual às canções", diz a professora de canto Vera do Canto e Mello.
Existem artistas que têm voz pequena – são fisicamente incapazes de aumentar o volume –, e outros que limitam os recursos vocais porque acreditam na eficiência de uma interpretação econômica. Fernanda Takai e Nara Leão enquadram-se na primeira categoria; João Gilberto, cantor de grande extensão vocal, na segunda. Para o ouvinte, porém, a distinção acaba sendo irrelevante: o que importa é o que o artista consegue fazer com os dons que tem. Os superagudos de uma Whitney Houston ou de uma Celine Dion distorcem as letras e banalizam o sentimento. A voz contida, porém, tem maleabilidade para dar às palavras seu significado emocional preciso(veja o quadro abaixo). Menos é mais.
Menos é mais |
Divulgação |
CARLA BRUNI
Onde aprendeu a cantar: italiana de nascimento, a primeira-dama da França é fiel aos artistas franceses de chanson, de voz discreta, quase falada, como Serge Gainsbourg
O maior acerto: seus sussurros sublinham a sensualidade de letras como Tu Es Ma Came, na qual compara a paixão por um homem ao vício em heroína
LILY ALLEN
Onde aprendeu a cantar: suas principais escolas musicais são os artistas de ska inglês, surgidos no fim dos anos 80, e o canto falado do rap
O maior acerto: seu canto não é propriamente pequeno – é infantilizado. Esse tom de menininha dengosa torna mais debochadas canções como Smile e Not Fair, em que ela reclama dos ex-namorados
Lailson Santos |
Onde aprendeu a cantar: com os intérpretes contidos da bossa nova – em particular, com Nara Leão – e artistas pop de vocais delicados como Tracey Thorn, do duo Everything But the Girl, e Suzanne Vega O maior acerto: canções tristes e sofridas – como Luz Negra, de Nelson Cavaquinho – ganham uma pungência sem melodrama na sua interpretação |
Cyntho/Corbis/Latinstock | MADELEINE PEYROUX Onde aprendeu a cantar: a cantora americana é imitadora de Billie Holiday, cuja voz tem um alcance menor do que a de outras divas do jazz O maior acerto: emulando o modo preguiçoso e dolente de Billie Holiday, Madeleine encontrou o tom certo para clássicos do country e do blues como Weary Blues from Waitin’, de Hank Williams, e Careless Love, de W.C. Handy |