É de Luiz Werneck Vianna a frase que possivelmente melhor define a dinâmica da política brasileira nos últimos 15 anos. Diz o sociólogo carioca que PSDB e PT disputam entre si, no nível nacional, para ver quem lidera o "atraso".
O que é o "atraso" para Werneck Vianna? É a forma tradicional de fazer política no Brasil, que se caracteriza pela conquista de posições de poder e privilégio no governo central em benefício de grupos políticos e familiares de base regional.
A liderança do PSDB se exerceu sob Fernando Henrique; a do PT, sob Lula. O aspecto contraditório dessa "fórmula de governo" é que a liderança dos setores mais "modernos" requer compromissos com o próprio "atraso". Primeiro, porque não é possível governar sem alianças. Segundo, porque PSDB e PT disputam quase o mesmo território político e jamais cogitaram seriamente de se aliar contra o "atraso". Portanto, na fórmula adotada nos últimos 15 anos, a questão-chave a avaliar, para um e outro partido, a cada momento, a cada questão, diz respeito ao tamanho do preço a pagar em nome da "modernização" democrática do País.
Na crise do Senado, o presidente Lula resolveu pagar o preço de dar ampla, total e irrestrita sustentação a Sarney. Moveu-o alguma consideração relativa a reformas pendentes ou conquistas democráticas a defender, que dependeriam do apoio do grupo majoritário no PMDB? Sabemos que não. A decisão presidencial foi exclusivamente motivada pela importância atribuída ao apoio do partido - por sua estrutura municipal e estadual e, principalmente, pelo tempo a que faz jus no horário eleitoral "gratuito" - à candidatura de Dilma.
A esta altura, é cedo para dizer qual o resultado eleitoral da decisão de Lula. É incerto se os votos que certamente Dilma perderá entre os eleitores mais informados, em maior número nos centros urbanos, serão compensados, com sobra, pelos votos dos eleitores mais suscetíveis à propaganda eleitoral e aos fatores locais de definição do voto, nos municípios menores. Não há dúvida, porém, dos danos que a decisão do presidente Lula inflige a seu próprio partido, cujas história e imagem estão ligadas aos setores mais "modernos" da sociedade brasileira, que repudiam as práticas políticas típicas do "atraso".
A decisão de Lula tem implicações, ainda, para a equação de poder num eventual futuro governo de sua hoje candidata, mais amarrada do que nunca ao PMDB comandado por Sarney e Renan. Que condições terá Dilma, se vitoriosa, de liderar o "atraso" no próximo mandato presidencial? Ela que não tem peso político específico nem sequer dentro de seu próprio partido. Dessa ótica, a decisão presidencial produz danos que vão além de seu próprio partido e além do momento presente. Lula deu fôlego ao "atraso", quando este poderia ter sofrido uma derrota exemplar.
A decisão presidencial não é, por outro lado, um episódio de todo surpreendente. O governo Lula teve dois modelos de gestão de alianças. O primeiro deu preferência à negociação de espaços políticos, no Congresso e no Executivo, com um conjunto de médios e pequenos partidos, em especial o PTB e o Partido Liberal, hoje Partido da República (sic). Esse modelo naufragou com a crise do "mensalão". Em lugar do arranjo miúdo, implantou-se o modelo da grande aliança com o maior partido no Congresso, o PMDB. O grupo de Sarney e Renan fortaleceu-se justamente nesse processo de negociação, ampliando seu controle sobre o Senado e sobre o partido, além de sua participação no governo e no Estado. Vista dessa perspectiva, a decisão presidencial foi longa e metodicamente construída.
Precisava ter sido assim? A verdade é que Lula não necessitava de alianças tão amplas quanto as que se impuseram ao governo FHC. Este se propôs a fazer várias emendas à Constituição e estava como que obrigado a formar e manter maiorias parlamentares iguais ou maiores que três quintos nas duas Casas do Congresso. Lula, por sua vez, jamais teve uma agenda legislativa ambiciosa e, se tinha, logo desistiu dela. Não estava, portanto, forçado a compor uma supermaioria.
Poderia ter havido alianças de tipo diferente? Poderia, se o governo tivesse chamado a oposição, em especial o PSDB, para um acordo em torno de uma agenda parlamentar comum. Vínhamos de uma transição civilizada de governo e não havia no PSDB uma rejeição a priori, como no governo de FHC houvera por parte do PT, a um diálogo em torno de uma agenda parlamentar comum. Um acordo dessa natureza, sem participação tucana no governo, permitiria diminuir o peso relativo do "atraso" no condomínio do poder e não implicaria borrar a identidade e os projetos políticos dos dois partidos. Lula, no entanto, decidiu investir retoricamente contra a "herança maldita" e pescar apoio em águas mais turvas. Ainda uma vez, ao lançar-se na operação para poupar Sarney, contra parte dos parlamentares e da base do seu partido, confirmou essa opção.
Torço para que não tenha sepultado essa agenda em definitivo, mantendo-a como uma possibilidade aberta para o próximo mandato presidencial, seja quem vier a ser o ocupante do Palácio do Planalto. Com todos os seus muitos defeitos, PSDB e PT estão entre os pouquíssimos partidos minimamente programáticos que a sociedade brasileira conseguiu produzir desde que começou a sair do regime autoritário. É bom que não se misturem, preservando duas ofertas eleitorais diferenciadas. Mas é importante que busquem construir, sem exclusivismos, uma nova fórmula de governo. A da aliança preferencial com o "atraso", que Lula levou ao paroxismo, esgotou-se.
Pode ser que ainda esteja apta a assegurar a governabilidade no próximo mandato, no sentido mais mesquinho e conservador do termo, mas não será capaz de nos livrar do entulho secular de privilégios, favores e transações público-privadas que teima em sobreviver.
O que é o "atraso" para Werneck Vianna? É a forma tradicional de fazer política no Brasil, que se caracteriza pela conquista de posições de poder e privilégio no governo central em benefício de grupos políticos e familiares de base regional.
A liderança do PSDB se exerceu sob Fernando Henrique; a do PT, sob Lula. O aspecto contraditório dessa "fórmula de governo" é que a liderança dos setores mais "modernos" requer compromissos com o próprio "atraso". Primeiro, porque não é possível governar sem alianças. Segundo, porque PSDB e PT disputam quase o mesmo território político e jamais cogitaram seriamente de se aliar contra o "atraso". Portanto, na fórmula adotada nos últimos 15 anos, a questão-chave a avaliar, para um e outro partido, a cada momento, a cada questão, diz respeito ao tamanho do preço a pagar em nome da "modernização" democrática do País.
Na crise do Senado, o presidente Lula resolveu pagar o preço de dar ampla, total e irrestrita sustentação a Sarney. Moveu-o alguma consideração relativa a reformas pendentes ou conquistas democráticas a defender, que dependeriam do apoio do grupo majoritário no PMDB? Sabemos que não. A decisão presidencial foi exclusivamente motivada pela importância atribuída ao apoio do partido - por sua estrutura municipal e estadual e, principalmente, pelo tempo a que faz jus no horário eleitoral "gratuito" - à candidatura de Dilma.
A esta altura, é cedo para dizer qual o resultado eleitoral da decisão de Lula. É incerto se os votos que certamente Dilma perderá entre os eleitores mais informados, em maior número nos centros urbanos, serão compensados, com sobra, pelos votos dos eleitores mais suscetíveis à propaganda eleitoral e aos fatores locais de definição do voto, nos municípios menores. Não há dúvida, porém, dos danos que a decisão do presidente Lula inflige a seu próprio partido, cujas história e imagem estão ligadas aos setores mais "modernos" da sociedade brasileira, que repudiam as práticas políticas típicas do "atraso".
A decisão de Lula tem implicações, ainda, para a equação de poder num eventual futuro governo de sua hoje candidata, mais amarrada do que nunca ao PMDB comandado por Sarney e Renan. Que condições terá Dilma, se vitoriosa, de liderar o "atraso" no próximo mandato presidencial? Ela que não tem peso político específico nem sequer dentro de seu próprio partido. Dessa ótica, a decisão presidencial produz danos que vão além de seu próprio partido e além do momento presente. Lula deu fôlego ao "atraso", quando este poderia ter sofrido uma derrota exemplar.
A decisão presidencial não é, por outro lado, um episódio de todo surpreendente. O governo Lula teve dois modelos de gestão de alianças. O primeiro deu preferência à negociação de espaços políticos, no Congresso e no Executivo, com um conjunto de médios e pequenos partidos, em especial o PTB e o Partido Liberal, hoje Partido da República (sic). Esse modelo naufragou com a crise do "mensalão". Em lugar do arranjo miúdo, implantou-se o modelo da grande aliança com o maior partido no Congresso, o PMDB. O grupo de Sarney e Renan fortaleceu-se justamente nesse processo de negociação, ampliando seu controle sobre o Senado e sobre o partido, além de sua participação no governo e no Estado. Vista dessa perspectiva, a decisão presidencial foi longa e metodicamente construída.
Precisava ter sido assim? A verdade é que Lula não necessitava de alianças tão amplas quanto as que se impuseram ao governo FHC. Este se propôs a fazer várias emendas à Constituição e estava como que obrigado a formar e manter maiorias parlamentares iguais ou maiores que três quintos nas duas Casas do Congresso. Lula, por sua vez, jamais teve uma agenda legislativa ambiciosa e, se tinha, logo desistiu dela. Não estava, portanto, forçado a compor uma supermaioria.
Poderia ter havido alianças de tipo diferente? Poderia, se o governo tivesse chamado a oposição, em especial o PSDB, para um acordo em torno de uma agenda parlamentar comum. Vínhamos de uma transição civilizada de governo e não havia no PSDB uma rejeição a priori, como no governo de FHC houvera por parte do PT, a um diálogo em torno de uma agenda parlamentar comum. Um acordo dessa natureza, sem participação tucana no governo, permitiria diminuir o peso relativo do "atraso" no condomínio do poder e não implicaria borrar a identidade e os projetos políticos dos dois partidos. Lula, no entanto, decidiu investir retoricamente contra a "herança maldita" e pescar apoio em águas mais turvas. Ainda uma vez, ao lançar-se na operação para poupar Sarney, contra parte dos parlamentares e da base do seu partido, confirmou essa opção.
Torço para que não tenha sepultado essa agenda em definitivo, mantendo-a como uma possibilidade aberta para o próximo mandato presidencial, seja quem vier a ser o ocupante do Palácio do Planalto. Com todos os seus muitos defeitos, PSDB e PT estão entre os pouquíssimos partidos minimamente programáticos que a sociedade brasileira conseguiu produzir desde que começou a sair do regime autoritário. É bom que não se misturem, preservando duas ofertas eleitorais diferenciadas. Mas é importante que busquem construir, sem exclusivismos, uma nova fórmula de governo. A da aliança preferencial com o "atraso", que Lula levou ao paroxismo, esgotou-se.
Pode ser que ainda esteja apta a assegurar a governabilidade no próximo mandato, no sentido mais mesquinho e conservador do termo, mas não será capaz de nos livrar do entulho secular de privilégios, favores e transações público-privadas que teima em sobreviver.