Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 22, 2009

A Ascensão do Dinheiro, de Niall Ferguson

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Dinheiro também é cultura

Um livro demonstra que a inovação financeira sempre 
foi um fator central no avanço da civilização – e devolve
à economia sua dimensão de aventura intelectual


Benedito Sverberi


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Em novembro do ano passado, quando os mercados financeiros mundiais estavam mergulhados no pânico absoluto, a rainha Elizabeth da Inglaterra visitou a London School of Economics para inaugurar um novo prédio. Na ocasião, aproveitou para perguntar aos professores da tradicional escola de economia o motivo da irrupção de uma das mais profundas crises econômicas da história. "Mas como ninguém percebeu o que estava acontecendo?", questionou a rainha, que é famosa por sempre manter a fleuma e evitar ao máximo emitir opiniões sobre qualquer assunto. "Terrível." A rainha, é óbvio, não esteve sozinha ao pôr em dúvida o tirocínio dos economistas. Desde a eclosão da crise, eles e seus modelos teóricos caíram em desgraça. As ferramentas financeiras desenvolvidas nos últimos cinquenta anos foram classificadas de inúteis, nas críticas mais amenas, ou de perniciosas, nas mais acerbas. Também voltou com força a ideia de que as bolsas não são mais do que cassinos vulgares, nos quais espertalhões fazem fortuna à custa de inocentes. Escrito por um súdito da rainha, o historiador escocês Niall Ferguson, A Ascensão do Dinheiro (tradução de Cordelia Magalhães; Planeta; 424 páginas; 49,90 reais) ajuda a combater esse espírito. Primeiro, ao demonstrar que a inovação financeira sempre foi um fator central no avanço das sociedades – ou mesmo das civilizações. Em segundo lugar, por conferir à reflexão econômica a sua devida dimensão de aventura intelectual.

"Atrás de cada fenômeno histórico grandioso existe um segredo financeiro", afirma Ferguson. A Ascensão do Dinheiro traça a história das finanças desde os seus primórdios, na Mesopotâmia. E essa história, diz Ferguson, não deve ser vista apenas como um pano de fundo para os grandes acontecimentos da cultura e da política. Todos os fios estão entretecidos. Na transição dos séculos XIV e XV, por exemplo, o florescimento dos negócios bancários na Itália foi condição indispensável para que a Renascença tivesse seus esplendores. Da mesma forma, a criação das finanças corporativas foi alicerce para o império britânico, e a expansão da indústria de seguros e do crédito ao consumidor, um pressuposto da prosperidade americana no século XX. Ferguson, obviamente, não deixa de registrar os momentos de ruptura. Seria uma das "verdades perenes" da história financeira o fato de que, "mais cedo ou mais tarde, as bolhas sempre explodem". No balanço geral da história, contudo, os ganhos sempre se sobrepõem às perdas. Ferguson rejeita peremptoriamente a tese de que a pobreza decorre da exploração de homens simples por financistas predatórios. "A pobreza", diz ele, "tem muito mais a ver com a falta de instituições financeiras e de bancos do que com sua presença."

O livro de Ferguson também é valioso por apontar muitos dos personagens que, ao longo dos séculos, foram responsáveis pelas grandes inovações no mundo das finanças. São figuras como o matemático italiano Leonardo de Pisa, ou Fibonacci, responsável pela introdução do sistema decimal na Europa da Idade Média, ou o barão Nathan de Rothschild, um dos fundadores da dinastia de financistas que dominou o sistema bancário europeu no século XIX e aperfeiçoou a emissão de títulos de dívidas de países. Aparecem, por fim, alguns dos pais do pensamento financeiro contemporâneo, calcado na matemática e que deu base para o extraordinário crescimento daquilo que Ferguson chama de "Planeta Finanças", com sua miríade de títulos e derivativos. São acadêmicos ainda vivos e atuantes, como Harry Markowitz, pioneiro no estudo de diversificação de carteiras de investimentos, e Myron Scholes, que, junto com Fischer Black (já falecido), desenvolveu a fórmula de Black-Scholes, uma equação matemática utilizada para dar preço a ativos financeiros. Eles são os principais alvos daqueles que, na esteira da crise, falam no desmoronamento de uma parte considerável do edifício teórico da economia capitalista.

Ferguson ajuda a separar as críticas pertinentes ao pensamento financeiro moderno daquelas que são apenas mistificação ideológica. Lança luz, principalmente, sobre o campo em desenvolvimento da economia comportamental, que põe em xeque a abstração que está no centro da teoria financeira contemporânea: a ideia de que os indivíduos que atuam no mercado são sempre "racionais", ou seja, capazes de processar informações de maneira perfeita, de modo a tomar decisões que sempre maximizem os seus ganhos e respondam da melhor maneira aos seus interesses. Diz Ferguson: "Se o sistema financeiro tem um defeito, é que ele reflete e amplia aquilo que somos, como seres humanos. Os booms e quebradeiras são produto, na raiz, da nossa volatilidade emocional". A despeito da crise, as ferramentas financeiras desenvolvidas nos últimos cinquenta anos não serão abandonadas. Os mercados já não conseguem viver sem elas – e isso é bom, pois, apesar de suas falhas, elas foram fundamentais para democratizar o crédito e o consumo, cumprindo seu papel histórico de alimentar o desenvolvimento. Como Ferguson sugere, mais que derrocada, a palavra que melhor se aplica ao processo por que estão passando os mercados financeiros neste exato momento é evolução. Como em tantas outras vezes no passado.


LIVROS  

A Ascensão do Dinheiro, de Niall Ferguson

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Seguro como Casas

Ela é o jogo econômico favorito no mundo de fala inglesa: a propriedade. Nenhuma outra faceta da vida financeira tem tanto peso na imaginação popular. Nenhuma outra decisão de dotação de ativo, de valor, inspirou tantas conversas em jantares e festas. O mercado imobiliário é incomparável. Todo adulto, não importa o quão economicamente analfabeto, tem uma visão, uma ideia sobre suas perspectivas futuras. Até mesmo as crianças são ensinadas a subir pela escada da propriedade, muito antes de terem seu próprio dinheiro.* E a maneira como as ensinamos é literalmente a jogar um jogo imobiliário.

O jogo que hoje conhecemos como Monopólio foi engendrado pela primeira vez em 1903, por uma americana chamada Elizabeth – "Lizzie" – Phillips, uma partidária fervorosa do economista radical Henry George. O sonho utópico de Lizzie era de um mundo no qual o único imposto seria um tributo sobre os valores da terra. O objetivo pretendido do jogo era expor a iniquidade de um sistema social no qual uma pequena minoria de proprietários de terra lucrava com os aluguéis que recolhiam dos seus inquilinos. Originalmente conhecido como "O jogo dos proprietários", esse proto-Monopólio tinha várias características familiares – a trilha contínua retangular, o canto do Vai para a Cadeia –, mas pareceu muito complexo e didático para ter apelo de massa. De fato, entre os primeiros a adotá-lo estava uma dupla excêntrica de professores universitários, Scott Nearing, da Warton, e Guy Tugwell, da Columbia, que o modificaram para usá-lo na sala de aula. Foi um engenheiro hidráulico desempregado chamado Charles Darrow que viu o potencial comercial do jogo depois que foi apresentado por amigos a uma versão baseada nas ruas de Atlantic City, o balneário na costa de Nova Jersey. Darrow redesenhou o tabuleiro, de tal modo que cada quadrado da propriedade fosse cruzado por uma faixa brilhantemente colorida, e entalhou à mão pequenas casas e hotéis que os jogadores poderiam "construir" nos quadrados que tivessem "adquirido". Darrow tinha muito jeito com as mãos (ele conseguia produzir um desses jogos completos em oito horas), mas também teve a "audácia" de um vendedor, pois conseguiu convencer a loja de departamentos John Wanamaker, da Filadélfia, e o varejista de brinquedos F. A. Schwartz a comprarem seu brinquedo para o Natal de 1934. Não demorou muito e ele estava vendendo mais do que podia produzir. Em 1935, a companhia Parker Brothers, que fazia jogos de tabuleiro (e que não tinha se interessado pelo primeiro Jogo do Proprietário), comprou seu negócio.

* Despertando expectativas que podem ser impossíveis de realizar. O aumento de quinze vezes a mais nos preços das casas na Inglaterra, entre 1975 e 2006, colocou a propriedade de um lar fora do alcance de quase todos aqueles compradores de primeira viagem que não conseguirem o auxílio financeiro dos seus pais.

A Grande Depressão pode ter parecido um período desfavorável e impróprio para lançar o que, naquela altura, tinha sido mudado para um jogo para presuntivos proprietários. Mas talvez todo aquele multicolorido dinheiro falso fizesse parte do apelo do Monopólio. "Como o nome do jogo sugere", anunciava a Parker Brothers em abril de 1935:

... os jogadores lidam com o mercado imobiliário, estradas de ferro e empresasde utilidades públicas, num esforço para obter o monopólio sobre umapropriedade, de modo a obter aluguel dos outros jogadores. A animação correelevada e solta quando eles se deparam com problemas tão familiares quanto as hipotecas, impostos, cofre comunitário, opções, aluguéis, dinheiro de juros,mercado imobiliário não desenvolvido, hotéis, edifícios de apartamentos, casas,empresas de energia e outras transações, para as quais o dinheiro de papel é fornecido.

O jogo foi um sucesso fenomenal. No final de 1935, havia vendido um quarto de milhão de exemplares. Em quatro anos, versões foram criadas na Grã-Bretanha (onde a Waddington's criou a versão de Londres que eu joguei pela primeira vez), França, Alemanha, Itália e Áustria – embora os governos fascistas tivessem sido ambíguos sobre o caráter do jogo, então laudatoriamente capitalista. 3 Na época da II Guerra Mundial, o jogo era tão ubíquo que a inteligência britânica pôde usar os tabuleiros de Monopólio fornecidos pela Cruz Vermelha, para contrabandear kits de fuga – incluindo mapas e moedas europeias verdadeiras – para britânicos presos em campos alemães. 4 Desempregados americanos e prisioneiros britânicos apreciavam o Monopólio pela mesma razão. Na vida real, os tempos podem estar difíceis, mas, quando jogamos Monopólio, podemos sonhar em comprar ruas inteiras. O que o jogo nos diz, numa completa contradição com a intenção da sua inventora original, é que é inteligente possuir propriedades. Quanto mais propriedades você possuir, mais dinheiro você faz e mais dinheiro você tem. No mundo de fala inglesa particularmente, tornou-se uma verdade universalmente reconhecida que nada bate tijolos e argamassa como um investimento.

"Seguro como casas": a frase lhe diz tudo que você precisa saber sobre o motivo de todas as pessoas ansiarem para possuir seus próprios lares, no mundo inteiro. Mas essa frase significa algo mais preciso no mundo das finanças. Significa que não existe nada mais seguro do que emprestar dinheiro para as pessoas comprarem propriedades. Por quê? Porque, se elas não pagarem o empréstimo, o emprestador, ou o banco, pode tomar a propriedade. Mesmo que elas fujam, a casa não desaparece nem sai do lugar. Como dizem os alemães (e também os brasileiros) terrenos e casas são propriedades "imóveis". Assim, não é por coincidência que a fonte de recursos mais importante para um negócio novo nos Estados unidos seja a hipoteca da casa do empreendedor. Correspondentemente, as instituições financeiras se tornaram cada vez menos inibidas a respeito de emprestar dinheiro para pessoas que querem comprar propriedades. Desde 1959, o total da dívida hipotecária pendente nos Estados unidos cresceu 75 vezes. Em conjunto, todos os proprietários americanos deviam uma soma equivalente a 99% do PIB do país no final de 2006, comparado com 38% cinquenta anos atrás. Esse salto para cima no volume dos empréstimos ajudou a financiar um boom no investimento residencial que atingiu um pico de cinquenta anos em 2005. Durante algum tempo, a oferta de residências novas pareceu incapaz de manter o ritmo com a demanda acelerada. Cerca da metade do crescimento do PIB americano na primeira metade de 2005 era relacionada com o mercado imobiliário.

A paixão pela propriedade no mundo de fala inglesa também tem sido o fundamento para um experimento político: a criação das primeiras democracias de donos de propriedade no mundo, com algo entre 65% e 83% de famílias que possuem a casa onde moram.* A maioria dos eleitores, em outras palavras, também é de proprietários. Alguns dizem que esse é um modelo que o mundo inteiro deveria adotar. De fato, nos anos recentes, ele está se espalhando rápido, com booms nos preços das casas e apartamentos não somente na "Angloesfera" – Austrália, Canadá, Irlanda, Reino unido e os Estados unidos –, mas também na China, França, Índia, Itália, Rússia, Coreia do Sul e Espanha. Em 2006, a inflação nominal do preço das casas ultrapassou 10% em oito de cada dezoito países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Os Estados unidos não tiveram, de fato, uma bolha imobiliária excepcional entre 2000 e 2007: os preços subiram muito mais nos Países Baixos e na Noruega.5

Mas a propriedade realmente é tão segura quanto uma casa? Ou o jogo do mercado imobiliário é mais como um castelo de cartas?

* A Irlanda lidera o campo com 83% de famílias que possuem seus próprios lares, seguida pela Austrália e o Reino unido (ambos os países com 69%), Canadá (67%) e os Estados unidos (65%). A porcentagem para o Japão é de 60%, para a França é de 54% e de 43% para a Alemanha. Observe, entretanto, que esses números são de 2000. Desde então, o número para os Estados unidos cresceu para acima de 68%. Observe também a variação regional: os americanos do Meio Oeste e sulistas são significativamente donos mais prováveis de suas próprias casas (72%) do que os americanos que vivem no Oeste e no Nordeste do país. Comprar imóveis é mais barato no Meio Oeste e no Sul. Setenta e oito por cento dos habitantes da West Virginia possuem seus próprios lares, ao passo que apenas 46% dos nova-iorquinos são proprietários de suas residências.


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