Eis mais um puxão de orelhas: "Toda vez, neste país, que se começa a fazer carnaval com coisas que não dão samba, as coisas vão ficando cada vez mais desacreditadas na opinião pública." Impropriedade, exagero ou simplesmente mais um dito jocoso a entrar no dicionário da era Lula? O presidente cometeu a frase acima para desqualificar o relato da ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira de que se encontrou com Dilma Rousseff no Palácio do Planalto, quando a ministra teria solicitado acelerar a investigação sobre o filho de José Sarney. Sua Excelência, mais uma vez, embaralha as ideias, pois samba, neste país, entra em qualquer mote. Até histórias estapafúrdias, sem fundamento, produzem sambas festejados, ou porque as letras são engenhosas, ou por conta da engraçada criação dos personagens. É só lembrar que "a princesa Leopoldina arresolveu se casá, mas Chica da Silva tinha outros pretendentes e obrigou a princesa a se casar com Tiradentes". Esse é o Samba do Crioulo Doido, peça de nonsense do inesquecível Stanislaw Ponte Preta, que ainda abriga Anchieta, o vigário dos índios, combinando com dom Pedro a proclamação da escravidão.
A falta de nexo entre personagens e episódios, pela viseira de Luiz Inácio, teria tudo para não dar samba e, assim, cair no descrédito. Não foi o que aconteceu. O samba pegou, foi para o teatro rebolado e Stanislaw, pseudônimo de Sérgio Porto, acabou marcando presença na cena institucional. O genial cronista, escritor e compositor só não imaginaria que seu Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), lançado nos idos de 60, chegaria ao pico do sucesso nestes tempos verborrágicos do lulismo. Deixemos o samba fora da lengalenga em torno de Lina-Dilma e voltemos ao cerne da peroração presidencial.
Se a descrença se espraia por todos os lados, é porque a falta de vergonha invade a política e os costumes, disparando sandices, trocando verdades por falsas versões, rasgando as normas das instituições e impondo a vontade pessoal sobre os anseios coletivos. Expande-se o descrédito quando o presidente da República desce do altar mais alto da Nação para a planície da discussão rasteira e das refregas partidárias, movidas pelo combustível que acende as fogueiras pré-eleitorais. Sua Excelência abusa da condição de líder popular ao brandir a arma do advogado de acusação para refutar um relato cujos detalhes e circunstâncias - motorista, gravação da placa do carro e de Lina por câmeras de vídeo, xale da ministra, cumprimentos iniciais - o tornam bastante crível.
Por ocasião do depoimento na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Lina Vieira, sem perder a postura de técnica e compostura de servidora pública, tocou na questão central: a interferência de um braço poderoso do governo sobre a estrutura de fiscalização, mesmo que não tenha havido - e isso foi posto - solicitação para engavetar a investigação sobre o filho de Sarney. O que estaria por trás da articulação e como a ministra poderia saber sobre um processo que corre em segredo de Justiça? O princípio da impessoalidade - que escudou a decisão da ex-secretária da Receita de não responder ao pedido da chefe da Casa Civil - não pode ser deixado à margem da questão. Essa é a razão que justifica a inserção do tema na pauta da política, ao contrário do que acha o presidente quando argumenta que "a discussão é de uma pobreza muito grande". Não se trata de avaliar a futrica (quem disse o quê), mas a esfera dos princípios constitucionais em jogo: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Essa é a verdadeira questão de fundo. As firulas verborrágicas só tocam em detalhes.
Pelo princípio da legalidade, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei. Ora, sabemos que a administração pública abriga feudos onde uma regrinha é bem conhecida: "Para nós, que mandamos no pedaço, tudo é permitido, mesmo o que for proibido." Se os gestores não se sujeitarem às ordens dos donatários das capitanias, são trocados. Olhe-se para a estrutura ministerial. É uma colcha de retalhos. Cada um com um dono. O governo petista continua a atender aos apetites partidários. Se a cultura da divisão do bolo tem fincado raízes ao longo dos governos - para efeito de montagem da base governista -, na era Lula essa estratégia foi levada ao extremo. Quebrado o eixo da legalidade, os outros eixos se rompem ao empuxo das pressões. Pelo princípio da impessoalidade, não pode haver privilégios ou restrições a ninguém. Mas o preceito acaba sendo sacrificado por ocupantes dos feudos. Há, felizmente, núcleos resistentes e sólidos, entre eles, a própria Receita Federal, onde um quadro de excelência técnica procura se reger pelo ideário republicano.
Outro princípio conspurcado é o da moralidade. O ímprobo, segundo nossa Constituição, deve ser punido com a suspensão dos direitos políticos. É triste constatar, porém, que o território da moral é fecundado por grupos incrustados nas malhas das instâncias governativas (União, Estados e municípios). Para expandir as mazelas contamos com um vírus patrimonialista resistente ao tempo. Seu DNA, de caráter mutante, estreita a faixa entre o legal e o ilegal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o injusto. E cria células que convivem pacificamente com uma cultura que viceja no tecido republicano desde os tempos da Roma antiga e cujo lema é "nem tudo o que é legal é honesto". Sobre o princípio da publicidade, a inversão de posições ganha assento no palco: atos secretos, como os que foram descobertos no Senado, multiplicam-se, mas eventos públicos, do tipo inauguração de obras, ganham extraordinária publicidade. A razão? Luzes para iluminar os atores. Quanto ao princípio da eficiência, a constatação salta à vista: somos um arquipélago formado por esparsas ilhas de excelência e vastos corredores burocráticos. Essa é a moldura que o nosso mestre de cerimônias teima em desconhecer. Prefere criar um samba próprio - pouco original - para o seu carnaval.
A falta de nexo entre personagens e episódios, pela viseira de Luiz Inácio, teria tudo para não dar samba e, assim, cair no descrédito. Não foi o que aconteceu. O samba pegou, foi para o teatro rebolado e Stanislaw, pseudônimo de Sérgio Porto, acabou marcando presença na cena institucional. O genial cronista, escritor e compositor só não imaginaria que seu Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), lançado nos idos de 60, chegaria ao pico do sucesso nestes tempos verborrágicos do lulismo. Deixemos o samba fora da lengalenga em torno de Lina-Dilma e voltemos ao cerne da peroração presidencial.
Se a descrença se espraia por todos os lados, é porque a falta de vergonha invade a política e os costumes, disparando sandices, trocando verdades por falsas versões, rasgando as normas das instituições e impondo a vontade pessoal sobre os anseios coletivos. Expande-se o descrédito quando o presidente da República desce do altar mais alto da Nação para a planície da discussão rasteira e das refregas partidárias, movidas pelo combustível que acende as fogueiras pré-eleitorais. Sua Excelência abusa da condição de líder popular ao brandir a arma do advogado de acusação para refutar um relato cujos detalhes e circunstâncias - motorista, gravação da placa do carro e de Lina por câmeras de vídeo, xale da ministra, cumprimentos iniciais - o tornam bastante crível.
Por ocasião do depoimento na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Lina Vieira, sem perder a postura de técnica e compostura de servidora pública, tocou na questão central: a interferência de um braço poderoso do governo sobre a estrutura de fiscalização, mesmo que não tenha havido - e isso foi posto - solicitação para engavetar a investigação sobre o filho de Sarney. O que estaria por trás da articulação e como a ministra poderia saber sobre um processo que corre em segredo de Justiça? O princípio da impessoalidade - que escudou a decisão da ex-secretária da Receita de não responder ao pedido da chefe da Casa Civil - não pode ser deixado à margem da questão. Essa é a razão que justifica a inserção do tema na pauta da política, ao contrário do que acha o presidente quando argumenta que "a discussão é de uma pobreza muito grande". Não se trata de avaliar a futrica (quem disse o quê), mas a esfera dos princípios constitucionais em jogo: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Essa é a verdadeira questão de fundo. As firulas verborrágicas só tocam em detalhes.
Pelo princípio da legalidade, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei. Ora, sabemos que a administração pública abriga feudos onde uma regrinha é bem conhecida: "Para nós, que mandamos no pedaço, tudo é permitido, mesmo o que for proibido." Se os gestores não se sujeitarem às ordens dos donatários das capitanias, são trocados. Olhe-se para a estrutura ministerial. É uma colcha de retalhos. Cada um com um dono. O governo petista continua a atender aos apetites partidários. Se a cultura da divisão do bolo tem fincado raízes ao longo dos governos - para efeito de montagem da base governista -, na era Lula essa estratégia foi levada ao extremo. Quebrado o eixo da legalidade, os outros eixos se rompem ao empuxo das pressões. Pelo princípio da impessoalidade, não pode haver privilégios ou restrições a ninguém. Mas o preceito acaba sendo sacrificado por ocupantes dos feudos. Há, felizmente, núcleos resistentes e sólidos, entre eles, a própria Receita Federal, onde um quadro de excelência técnica procura se reger pelo ideário republicano.
Outro princípio conspurcado é o da moralidade. O ímprobo, segundo nossa Constituição, deve ser punido com a suspensão dos direitos políticos. É triste constatar, porém, que o território da moral é fecundado por grupos incrustados nas malhas das instâncias governativas (União, Estados e municípios). Para expandir as mazelas contamos com um vírus patrimonialista resistente ao tempo. Seu DNA, de caráter mutante, estreita a faixa entre o legal e o ilegal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o injusto. E cria células que convivem pacificamente com uma cultura que viceja no tecido republicano desde os tempos da Roma antiga e cujo lema é "nem tudo o que é legal é honesto". Sobre o princípio da publicidade, a inversão de posições ganha assento no palco: atos secretos, como os que foram descobertos no Senado, multiplicam-se, mas eventos públicos, do tipo inauguração de obras, ganham extraordinária publicidade. A razão? Luzes para iluminar os atores. Quanto ao princípio da eficiência, a constatação salta à vista: somos um arquipélago formado por esparsas ilhas de excelência e vastos corredores burocráticos. Essa é a moldura que o nosso mestre de cerimônias teima em desconhecer. Prefere criar um samba próprio - pouco original - para o seu carnaval.