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Uma experiência radical
Brutalmente realista nas cenas de tortura, Anticristo,
de Lars von Trier, merece toda a polêmica que levantou.
É um filme sádico – mas também uma obra de uma
coragem heroica
Isabela Boscov
Fotos Nana Productions/Sipa Press e Divulgação |
O CAOS REINA Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe em cena do filme de Von Trier (à esq.): exposição quase pornográfica do sofrimento |
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Lars von Trier é um diretor de imenso talento, e também um manipulador contumaz. Desde que começou a subverter o movimento do qual foi fundador – o Dogma, aquele da câmera na mão, iluminação natural e nada de trilha sonora –, o dinamarquês tem depurado, em filmes como Ondas do Destino, Dançando no Escuro eDogville, um gênero que se poderia definir como melodrama experimental, no qual aplica surpreendentes inovações narrativas à missão ancestral de induzir tanto seus atores quanto os espectadores ao sofrimento. Manipular, porém, é algo que se faz pela ambição do controle, e é natural que Von Trier parecesse se colocar à parte, ou mesmo acima, das emoções que instigava. Em Anticristo (Antichrist, Dinamarca / Alemanha / França, 2009), entretanto, o diretor pela primeira vez cruza essa linha: no filme que estreia nesta sexta-feira no país, Von Trier mostra estar também ele sendo fustigado pelos sentimentos tremendos desencadeados pela história. Não por acaso, no último Festival de Cannes ele conseguiu assim pôr em estado de choque uma plateia que não só é a mais blasée do mundo como está preparada de antemão a esperar dele trabalhos saturados de controvérsia e transgressão.
No magnífico prólogo de Anticristo, rodado em preto e branco e em câmera lenta (aliás, num dos mais belos usos já feitos desse recurso), um casal faz sexo de forma idílica e apaixonada, ao som de uma ária de Händel, enquanto seu filho pequeno sai do berço, é atraído para uma janela pela neve que cai lá fora, e despenca. Seguem-se três "capítulos", intitulados Luto, Dor e Desespero, nos quais o diretor desdobra até o limite, e para além dele, as repercussões dessa perda. A mulher, chamada apenas de Ela, enlouquece de luto – e Von Trier, conhecido pelos extremos a que sujeita suas atrizes, tira da francesa Charlotte Gainsbourg um retrato tão animalesco da dor que assistir a ele é quase pornográfico. O marido, chamado de Ele e interpretado pelo americano Willem Dafoe, personifica a reação oposta – a racionalização, e também a arrogância implícita nela. Psicoterapeuta, Ele esboça um plano para obrigar Ela a enfrentar as etapas do luto, e então sair dele, sem a ajuda de medicamentos. Uma vez que todas as emoções mais intensas e confusas da mulher parecem convergir para Éden, a cabana isolada nas montanhas em que ela passou o último verão com o filho, Ele leva-a para lá. E lá, nesse paraíso perdido, Ela e Ele vão se impor, um ao outro e a si mesmos, martírios terríveis, encenados ora de forma onírica (mais certo seria dizer à maneira de um pesadelo, ou de um delírio), ora de maneira brutalmente realista.
Von Trier tem o dom inato de tocar certos nervos e de, pela resposta que provoca com esse toque, expor o espectador de maneira desconcertante. Em Cannes, a fúria correu solta na plateia – contra imagens inexplicáveis, como a da raposa que diz, com voz rouca, que "o caos reina"; contra a suposta misoginia do diretor, já que a certa altura Ela passa a crer que as mulheres são as instigadoras desse caos e que a natureza, que elas representam, é o templo de Satanás; e acima de tudo contra as cenas demoradamente explícitas de tortura, nas quais Ela golpeia o sexo do marido, bate uma estaca em sua perna e prende a ela uma pedra e, então, corta o próprio clitóris com uma tesoura enferrujada. Ler Anticristo ao pé da letra, porém, é rejeitar uma experiência radical, estranha, incômoda, mas em última análise brilhante. Seria mesmo possível dizer heroica: da mesma forma que os sentimentos se abrem diante do espectador como abismos escuros, nos quais se cai sem saber quando se encontrará o fundo, também Von Trier se deixa tragar por eles.Anticristo não é um filme que deve ser explicado (nem pelo diretor, segundo o qual pedir dele uma justificativa seria como exigir da galinha que explicasse a canja). Deve ser atravessado e enfrentado. Deslindá-lo, principalmente à luz do elemento inesperado que Von Trier introduz no desfecho, ao recapitular aquele lindíssimo prólogo, é tarefa para os dias ou as semanas seguintes. Não que haja grande esperança de resolver afinal suas contradições, nem de compreender todas as atribulações que ele provoca. A única certeza que se pode ter, aqui, é a de estar diante de algo raro, se não único – um artista de coragem absoluta, e de despudor irrestrito.
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