Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 23, 2009

Não sem a mulher Miriam Leitão

O GLOBO

PANORAMA ECONÔMICO

O presidente Barack Obama está perdendo a guerra dele. Na campanha, ele culpava George Bush por ter dispersado esforços com a guerra do Iraque e dizia que o fundamental era o Afeganistão.

Dias atrás, quando o presidente Hamid Karzai aprovou a lei do estupro, para fazer concessões aos eleitores conservadores, a verdadeira guerra estava começando a ser perdida.

Uma sociedade não se salva sem as suas mulheres.

Elas são condutoras do progresso.

Não sou eu que digo, são os estudos que mostram que mães com maior escolaridade garantem que a futura geração estude mais. Pela educação, o país, como um todo, evolui. No Afeganistão, 80% das mulheres são analfabetas. Estavam proibidas de estudar durante o regime Talibã e continuam ameaçadas e encurraladas no regime que transformaria o Afeganistão.

Há uma constatação generalizada, diz o "New York Times", "do Banco Mundial, ao Comando Geral das Forças Armadas Americanas às instituições beneficentes como Care", que focar a mulher é a forma mais efetiva de combater a pobreza, o extremismo, a violência.

"No Afeganistão, o sacrifício no jogo político é feito pelas mulheres e as crianças", disse a deputada Fawzia Koofi à CNN. O casamento forçado de meninas é prática normal no país. Elas são a moeda de troca em disputas e em cobranças de dívidas. Em torno de 60% das meninas são obrigadas a se casar antes de 16 anos e o alto índice de gravidez entre 10 e 14 anos explica a elevada mortalidade materna, informa a revista inglesa "Economist".

Não sem as mulheres.

Não há modernização sem elas. Por isso foi tão desanimador que Karzai até justificasse a lei que permite que os maridos estuprem suas mulheres ou as deixem morrer de fome, caso não consintam com o sexo. É uma lei destinada a uma minoria étnica do país, mas os sinais de que as mulheres, de novo, estão sendo soterradas no país são cada vez mais fortes.

As fotos que os jornais brasileiros trouxeram nas edições de sexta-feira eram animadoras, de um certo ponto de vista. Apesar da intimidação dos talibãs, do risco de morte inclusive, elas, usando suas burcas, fizeram fila para votar. O comparecimento geral foi bem menor porque os grupos radicais estão cada vez mais fortes. Mesmo assim, era possível registrar depoimentos como o da afegã Bibi Robiah a Lourival Santanna, do "Estado de S. Paulo": "Estamos com medo, mas é nossa obrigação votar, por nosso país, para nossos filhos viverem em paz e terem emprego." As mulheres no poder não são iguais entre si. A atual secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, dá muito mais relevo à questão de gênero, em sua agenda, do que sua antecessora, Condoleezza Rice. Criou no Departamento de Estado o cargo de Embaixadora da mulher e nomeou para o posto sua ex-chefe de gabinete.

Em todas as viagens tem dedicado tempo, feito gestos, discursos e reuniões sobre os vários problemas dessa inquietante questão. Na África, fez um forte discurso condenando a prática do estupro coletivo.

Todo esse esforço será em vão se aceitarem a lei aprovada no parlamento afegão, e que teve até votos de algumas das mulheres parlamentares conservadoras.

Karzai disse que a lei foi mal interpretada no Ocidente.

Há como interpretar errado o direito dado a um homem de estuprar a mulher? Isso não precisa de tradução. É imundo em qualquer língua, em qualquer cultura.

Hillary explicou assim sua insistência no tema: "A democracia não significa nada se metade das pessoas não pode votar, ou se seus votos não contam, ou se sua taxa de alfabetização é tão baixa que seu voto pode ser posto em questão. É por isso que quando viajo eu falo sobre os direitos da mulher, eu encontro mulheres ativistas, eu levanto as preocupações das mulheres nas conversas com os líderes com os quais eu converso." Esse não é um assunto lateral. Tem sido posto à parte tempo demais. Mas os indicadores das mulheres falam muito sobre uma sociedade, e o grau de avanço a que se chegou. "Eu tendo a acreditar que a transformação do papel da mulher na sociedade é o último grande impedimento ao progresso universal", disse Hillary.

A Índia é uma democracia há mais de 60 anos, com regularidade de eleições, e hoje consta em todas as listas de candidatas à potência.

Hillary lembra, no entanto, que sem o empowerment (aumento do poder) das mulheres, a transformação não acontecerá. É até pior do que a secretária de Estado está dizendo. Na Índia, hoje pólo de alta tecnologia, o índice de analfabetismo das mulheres é de mais de 40%. Não, sem as mulheres, a Índia não será potência mundial.

No especial que o "NYT" tem publicado nos últimos dias, "Salvando as mulheres do mundo", as estatísticas vão piscando na tela da reportagem.

"Só 1% dos donos de terra são mulheres; a ONU calcula em cinco mil os assassinatos de 'honra' por ano, a maioria no mundo muçulmano; 130 milhões de mulheres sofreram corte genital; 21% das mulheres jovens de Gana disseram que sua iniciação sexual foi pelo estupro." O jornalista Nicholas Kristoff, um especialista no tema, e Sheryl WuDunn dizem que o mais importante desafio moral no século XIX era a escravidão, no século XX foi o totalitarismo, no século XXI é a violência contra a mulher. Nenhum país pode dizer que o problema está superado. Em todos, há muito a fazer.

Recentemente um amigo me perguntou se eu ainda era feminista e disse que pensava que eu estava além de tudo isso, por ser uma mulher bem-sucedida. Sonho estar além de tudo isso.

Mas, não sem as outras. Não sem todas elas.

oglobo.com.br/miriamleitao • e-mail: miriamleitao@oglobo.com.br COM ALVARO GRIBEL

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