A lei do bom senso
"O bom senso é a coisa mais bem distribuídado mundo. Cada um imagina estar tão bem provido
dele que até mesmo os mais difíceis de contentar
em todas as outras coisas não costumam desejar
mais do que o têm."
(René Descartes, em Discurso do Método)
O que o leitor pensaria de uma Lei do Bom Senso? Pois ela existiu em Portugal (1769). Seu objetivo era lidar com as complicações posteriores à devastação da peste negra (1348). Para reorganizar o país, passou-se a legislar sobre quase tudo.
As leis foram codificadas em quatro ordenações. As primeiras, as Afonsinas, surgiram em 1446. As últimas, as Filipinas (1603), transpiravam o estado "por todos os poros", segundo Raymundo Faoro.
Pela Lei do Bom Senso, os juízes interpretavam as ordenações conforme o senso comum. Se não eram claras, eles podiam guiar-se pelo "espírito" da lei, e não por sua "letra".
Em outras épocas, esse poder de arbítrio e a decorrente imprevisibilidade seriam péssimos para os negócios. O formalismo excessivo produzia custos e ineficiências. Nada disso era importante em Portugal daquele período, aonde não chegara o capitalismo contemporâneo. A economia girava em torno de monopólios do estado.
A Lei do Bom Senso pode ter feito andar os processos, mas não eliminou a valorização do formalismo, que se transmitiu aos herdeiros das tradições portuguesas. Hoje, é substituída pelo jeitinho e pela propina.
A devoção à forma apareceu nas 6 000 páginas de um inquérito recente da Polícia Federal. Como em outros documentos públicos, a forma venceu o conteúdo; a quantidade derrotou a precisão.
A falta de bom senso não é privilégio desses documentos. É visível nas propostas para mudar a lei do petróleo e criar uma empresa 100% estatal para o pré-sal, que seria explorado sob comando direto do estado. O debate é povoado por visões estatistas, ignorância econômica e anticapitalismo. Saltou do sarcófago a tola tese das "veias abertas da América Latina".
Essa tese sugere que os países ricos progrediram à custa de nossas riquezas. Na verdade, seu êxito veio da associação de economia de mercado, boas instituições e educação, que promovem o investimento, a inovação e os ganhos de produtividade. A América Latina ficou para trás por suas próprias deficiências, e não por causa da "exploração imperialista".
A cobiça pela receita do pré-sal nos remete aos desastres fiscais do passado recente. Antes de saber se extrairemos o petróleo, Lula promete gastar o dinheiro em educação e combate à pobreza. Muitos são os que querem um pedaço do esperado bolo.
O petróleo é do povo, mas proporciona bem-estar se for extraído de forma eficiente. No pré-sal, isso vai requerer investimentos de centenas de bilhões de dólares, que nem o governo nem a Petrobras possuem. Será preciso atrair investidores privados, o que dificilmente acontecerá se o governo se influenciar por impulsos ideológicos e mudar as regras.
O Brasil pode extrair o máximo de receitas do pré-sal com as regras atuais. Não é preciso criar uma Petrosal nem se inspirar no modelo da Noruega. Os próprios noruegueses dizem que nosso modelo é o melhor.
A construção de regras críveis e estáveis leva tempo. Sua consolidação requer longa continuidade. A desmoralização pode ser fácil, rápida e desastrosa. A mudança pode espantar os investidores.
Na Noruega, os recursos são investidos em ativos no exterior, em favor das próximas gerações. Os dólares ficam fora, o que evita a valorização cambial excessiva. Gastam-se apenas 4% dos respectivos rendimentos. Aqui, os recursos seriam gastos imediatamente e se exigiria o uso de navios e equipamentos nacionais no pré-sal. Haveria expansão de dispêndios em reais e valorização cambial. Poderíamos colher inflação e desindustrialização de outros setores, em vez de desenvolvimento e menos pobreza.
Por tudo isso, é preciso cautela. O pessoal do governo que estuda as propostas de mudança poderia desejar mais bom senso do que julga possuir.
Lula desprezou equivocadas idéias e manteve a política econômica. O Brasil ganhou com sua corajosa decisão. Se errar agora, poderá rasgar um bilhete de loteria premiado. A história não o perdoaria.