Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 10, 2008

A inflação da saúde

A ciência encontrou a cura para doenças,
revolucionou a qualidade de vida de pacientes
e aumentou a longevidade da população. Mas está
cada vez mais difícil financiar todos esses avanços


Giuliano Guandalini e Cíntia Borsato

Lailson Santos
Depois do acidente, a família Bortman dobrou a jornada de trabalho: despesas que o governo e o plano não pagaram

VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
Quadro: O mal da saúde
Nesta edição
A "ajuda" que encareceu os planos

Poucas famílias estavam tão protegidas financeiramente de emergências médicas quanto os Bortman, de São Paulo. Sendo neurocirurgião, o pai, Alberto, possuía contatos nos melhores hospitais e uma extensa rede de amigos médicos. Um plano de saúde privado também resguardava a mulher e os três filhos do custo de doenças ou acidentes. Contavam ainda com o acesso universal e gratuito à saúde, um direito gravado na Constituição. Difícil imaginar, portanto, uma família mais precavida. Na noite do dia 1º de abril de 2006, essa percepção foi abruptamente desfeita em um acidente com a filha do meio do casal, a estudante de medicina Daniela Bortman. Então com 23 anos, Daniela pegou carona no carro de um amigo a dois quarteirões da república de estudantes onde morava, em Taubaté, no interior de São Paulo. O carro em que estava foi atingido por outro automóvel, que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Dani sofreu uma lesão medular que a deixou tetraplégica.

O acidente revelou que a família não estava tão resguardada como supunha. Ainda que o plano de saúde tenha coberto os mais de 150.000 reais gastos com a UTI de ponta onde Daniela permaneceu por um mês, os maiores desafios vieram depois. Para que Daniela pudesse deixar o hospital, sua casa precisou ser toda adaptada para recebê-la. A família contratou enfermeiras e fisioterapeutas, além de comprar equipamentos especiais. Para evitar úlceras devido à falta de movimentos, uma das principais causas de morte em pacientes como Daniela, a família contou com uma inovação tecnológica: um colchão informatizado ligado a um microcomputador que se move de acordo com a pressão e o tempo. Manter essa estrutura custa, ao mês, mais de 13.000 reais. O plano de saúde de Daniela não quis pagar essa nova etapa do tratamento. Também alegou que, por sua natureza extra-hospitalar, o tratamento domiciliar deveria ser coberto pela saúde pública. Alberto buscou então ajuda do governo, mas sem sucesso. "Nenhum hospital público em São Paulo tem estrutura para a reabilitação da Daniela", diz ele. Restou à família mover um processo judicial contra a seguradora. Uma liminar obrigou o plano de saúde a pagar 6.000 reais mensais com o tratamento da estudante. Alberto arcou com o restante. Ao todo, as despesas da família com saúde saltaram de 1.300 reais, antes do acidente com Daniela, para 10.000 reais. Alberto vendeu um imóvel, ampliou sua jornada nos hospitais e adiou o projeto de mestrado. Diz ele: "Sou médico há trinta anos. Estava me preparando para diminuir a carga de trabalho. Hoje, mal tenho tempo de estudar. Trabalho dezesseis horas por dia de segunda a segunda".

Longe de ser uma exceção, o drama dos Bortman é um retrato do dilema que preocupa famílias e governos no mundo todo. O avanço tecnológico reduziu os custos intrínsecos à existência humana em diversas áreas. As pessoas gastam menos hoje para morar, locomover-se, vestir-se e comunicar-se. Mas não para curar-se e tratar-se de doenças. As UTIs, por exemplo, evoluíram muito na última década, o que foi fundamental para a recuperação de pacientes como a estudante Daniela. Mas o custo de uma diária em terapia intensiva subiu 90% desde 1997. Com isso, a inflação da saúde soma-se à de alimentos no mosaico de preocupações de famílias e governos no mundo todo. Mas o encarecimento dos alimentos é muito recente. Entre 1974 e 2005, o preço da comida despencou três quartos. No mesmo período, os gastos do país com saúde avançaram de 5% para 10% do produto interno bruto (PIB). Além disso, pode-se elevar a produção e baratear os alimentos usando a tecnologia no campo. Os tratamentos médicos, por sua vez, só ficam mais caros com a aplicação tecnológica.

Fabiano Accorsi
Farmácia da Santa Casa: produção própria resulta em economia anual de 6,5 milhões de reais

Mas o que diferencia a indústria médica da eletrônica ou automobilística, em que a tecnologia tende a baratear os produtos? Por que os preços sobem mais do que a capacidade de pagamento das famílias, das seguradoras e dos governos? O primeiro fator é a tecnologia. Tome-se o caso das próteses. O alto custo dos stents (dilatadores de artérias) cardíacos fez sextuplicar o preço de uma angioplastia em apenas sete anos (veja o quadro). Há também o gasto crescente com remédios. Na estrutura de custos da UTI do Hospital Albert Einstein, um dos melhores hospitais da América Latina, o que mais subiu nos últimos dez anos foram os medicamentos – 170% de aumento. Outros fatores de mercado insuflaram o encarecimento dos equipamentos. "Em alguns casos, há poucos fornecedores. A falta de concorrência entre os fabricantes impossibilita que os preços caiam para os pacientes", diz o infectologista David Uip, que deixou recentemente a direção do Instituto do Coração (InCor).

Outro ponto é que no Brasil, mas não apenas aqui, o sistema funciona como se não tivesse um dono preocupado com sua racionalidade e eficiência. As despesas sempre são bancadas por um "terceiro pagador". Isso significa que, num primeiro momento, o financiamento não sai diretamente do bolso nem dos pacientes, nem dos hospitais, nem dos médicos. Quem paga a conta do hospital, normalmente, são as seguradoras ou o governo. O problema é que esse modelo conflita com o desejo natural e justo que os pacientes têm de buscar o melhor tratamento, ainda que esse esforço se revele, depois, exagerado. Uma pessoa que tenha um plano de saúde deveria ter o direito de fazer quantos exames e consultas seus médicos acharem necessários. Mas se ela fizer isso de forma pouco criteriosa e abusiva, dizem as seguradoras, sobrecarregará as despesas. Raciocínio similar, sempre segundo as seguradoras, vale para o médico que, por imperícia ou para inflar os seus honorários, pediria mais exames do que o necessário ou para os hospitais que não se preocupariam em combater o desperdício na utilização de equipamentos e materiais. A guerra de acusações até hoje não contribuiu para melhorar a vida do principal interessado em que o sistema funcione: o paciente.

Nos últimos anos, as seguradoras passaram a pressionar os hospitais a cobrar menos pelos serviços prestados. Em um segundo momento, algumas investiram em sua própria rede de hospitais, em um processo conhecido como verticalização. Nesse modelo, uma operadora controla todos os serviços, o que reduz drasticamente os custos. Os críticos desse sistema, porém, dizem que ele leva a uma inevitável queda na qualidade. Afirma o oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do Einstein: "Ao atuar nas duas pontas, na venda do plano e no atendimento à saúde, a seguradora reduz gastos essenciais, o que se traduz em perda na qualidade do atendimento". Uip reforça o coro: "Os hospitais precisam, sim, combater o desperdício e ser mais eficientes. Mas procedimentos de alta complexidade têm custo elevado. As seguradoras precisam entender que as cirurgias em hospitais de referência são mais caras, mas o pós-operatório dos pacientes é melhor, o que diminui custos futuros de todos".

Divulgação
Exames de imagem de última geração: diagnóstico precoce reduz o custo do tratamento

Felizmente, essa queda-de-braço entre hospitais, fornecedores e seguradoras só existe porque a medicina progrediu, e o acesso à saúde democratizou-se. Até o século XIX o atendimento ficava restrito aos mais ricos, os únicos capazes de pagar pelos serviços particulares. As pessoas sem posses dependiam da benemerência das instituições religiosas. O primeiro país a estabelecer um sistema de atendimento médico foi a Alemanha, com a Lei do Seguro de Saúde de 1883, durante o governo do chanceler Otto von Bismarck. Aos poucos, outras nações européias seguiram no mesmo caminho. Hoje, todos os países do planeta possuem algum tipo de sistema de saúde. No Brasil, a Constituição de 1988 tornou, em tese, o acesso à saúde gratuita um direito universal de todo cidadão brasileiro. Para atender a esse objetivo foi criado, há vinte anos, o Sistema Único de Saúde (SUS). Na prática, no entanto, ocorreu com a saúde algo semelhante ao observado na educação. A qualidade baixa do atendimento público empurrou a classe média para o sistema privado. Atualmente, 39 milhões de pessoas possuem algum plano de seguro saúde e assistência médica – um a cada cinco brasileiros.

As perspectivas para a medicina são muito animadoras no tocante aos avanços tecnológicos que se vislumbram. Mas o quadro clínico das finanças inspira cuidados e lança indagações desafiadoras:

• Como popularizar tecnologias e medicamentos eficientes, mas cada vez mais caros?

• Se os recursos já são escassos, como ampliar o atendimento para as pessoas que ainda não possuem cobertura?

• Como reduzir os gastos hospitalares sem que haja uma queda na qualidade do atendimento?

A resposta mais simples, fácil e populista é reivindicar mais recursos públicos. Isso é o que se costuma ouvir no Brasil. Entretanto, especialistas em gestão da saúde afirmam que é possível fazer mais com os recursos disponíveis. Em outras palavras, ampliar a produtividade do setor, mesmo diante das pressões inescapáveis decorrentes da absorção tecnológica. Essa é a abordagem mais recente e inovadora para aplacar a explosão dos gastos em saúde. Para que isso ocorra, terá de haver um aprimoramento na maneira com a qual a saúde vem sendo administrada. Na avaliação da professora Regina Herzlinger, da Harvard Business School, uma das maiores especialistas do assunto nos Estados Unidos, a administração do setor de saúde não evoluiu como em outros ramos da atividade econômica. Afirma a economista: "Os hospitais são notórios pela falta de inovações administrativas que reduzam custos e aumentem a produtividade". De acordo com Herzlinger, a contabilidade da saúde não vai fechar enquanto não se romper o modelo em que hospitais e médicos são remunerados pela quantidade, e não pela qualidade de seu trabalho.

Fabiano Accorsi
Paciente peruano é atendido na Santa Casa de São Paulo: gratuidade até para estrangeiros

O Brasil carrega vícios semelhantes aos dos Estados Unidos. A discussão em torno de critérios de avaliação de qualidade apenas engatinha no país. "O Brasil é referência mundial em cobertura ampla de saúde, mas o grande problema é a qualidade desse serviço", diz Andre Medici, especialista em desenvolvimento social no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). De fato, estudos indicam que a falta de recursos não explica completamente as mazelas no setor. Afirma Bernard Couttolenc, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo: "O Brasil gasta com saúde mais do que outros países em desenvolvimento, e nem por isso possui indicadores mais favoráveis". Financiada pelos impostos, que tragam 40% de tudo o que o país produz, a saúde representa o maior orçamento do governo, mas não chega perto de fornecer um nível mínimo de decência. Por outro lado, a parcela da população que possui plano de saúde pago integralmente por ela ou com a ajuda das empresas onde trabalha também não está completamente coberta. Um sistema em que nenhuma das partes está satisfeita precisa de urgente conserto. O drama está no fato de que ninguém sabe por onde começar.

SEM MÁGICA

O encarecimento dos planos de saúde e dos serviços médicos é inevitável. Não há como detê-lo, mas os consumidores podem adotar algumas medidas para evitar surpresas e amenizar o impacto dos custos.

1 Planos de saúde não existem para substituir a medicina pública gratuita. A grande maioria deles não cobre transplantes de coração, quimioterapia oral ou exames mais complexos como o PET-scan. É sempre prudente acumular uma reserva financeira ou adquirir um bem com o objetivo de, se necessário, vendê-lo para cobrir os casos de emergência.

2 Omitir informações de doenças preexistentes, mesmo que acidentalmente, pode deixá-lo sem cobertura e acarretar a rescisão do contrato. Os planos estão muito atentos a isso.

3 Durante o tratamento ou a internação, guarde as receitas e anote o nome de médicos e enfermeiras. Em caso de queixa que precise da atuação da Justiça (o que não é raro), esses dados serão sempre úteis.

4 Tenha sempre em mente o que seu plano de saúde escolhido realmente cobre. Alguns custeiam as internações, mas não consultas e exames. Se economizar na prestação do plano, o mais prudente é aumentar o ritmo de formação da reserva de emergência.

5 Nem todos os postos de saúde públicos são ruins e ineficientes. Você paga impostos e tem direito como qualquer outro contribuinte de solicitar atendimento, remédios e vacinas sem custo adicional.

6 Alguns prazos de carência para consultas e exames são negociáveis. Leia com atenção o contrato e exija que as promessas do vendedor estejam impressas no documento.



Fotos: Photodisc/Royalty Free/Gettyimages, Sergio Castro/AE
Certifica.com

Arquivo do blog