Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 10, 2008

Novo presidente, mas Putin continua

O pequeno czar

Medvedev, o novo presidente da Rússia, foi escolhido por
seu poderoso mentor, Putin. Qual deles vai governar?


Thomaz Favaro

AFP
Esplendor ortodoxo: Medvedev faz uma pausa para pensar, ao lado da mulher, Svetlana, em cerimônia na Catedral da Anunciação, no Kremlin

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Conheça o país: Rússia

Um fantasma rondou a pomposa cerimônia de posse do presidente russo Dimitri Medvedev, na semana passada: qual será o real tamanho de Vladimir Putin no novo governo? Fisicamente, Putin, agora primeiro-ministro, pouco se diferencia de seu sucessor. São ambos esguios e cheios de energia. O presidente que saiu tem 1,70 metro de altura e o que entra, apropriadamente, alguns centímetros menos. No que se refere à estatura política, a diferença é incomensurável. Medvedev, advogado de 42 anos e o mais jovem governante que o país já teve, jamais ocupou um cargo eletivo em sua carreira. Suas qualidades se definem mais pelo que não é. Não carrega bagagem do período soviético – era um rapaz de 21 anos quando Mikhail Gorbachev lançou as reformas que redundariam no fim da URSS – e nunca passou perto do aparato dos serviços de inteligência, como seu mentor Putin, ex-espião da KGB. Tudo o que falou, até hoje, é bem-vindo, em especial a defesa do estado de direito e das liberdades democráticas fundamentais, exatamente o ponto mais fraco da Rússia putiniana. Até nas atividades físicas Medvedev, praticante de ioga, parece ser um homem menos agressivo do que seu antecessor, faixa preta em judô. Depois de oito anos de governo Putin, parece saudável que a Rússia tenha agora um presidente zen. Isso, claro, se Medvedev realmente preencher um requisito básico: assumir, de fato, o comando do governo. Para a maioria dos russos, ele é apenas o homem de confiança que seguirá com fidelidade as orientações de Putin – exatamente por isso foi eleito com impressionantes 70% dos votos. Uma marionete, dizem os poucos desafetos políticos que restaram.

O simples fato de Putin ter resistido à tentação do terceiro mandato, escolhendo em lugar disso o balé das cadeiras, já deve ser visto sob uma ótica positiva. A jogada é, justificadamente, interpretada como uma maneira de Putin continuar dando as cartas em um país que se acostumou a vê-lo tomar as mais variadas medidas de concentração de poder – como abolir as eleições para governador e nacionalizar empresas de petróleo e meios de comunicação. A única coisa de que não pode ser acusado é de enganar os eleitores. Como mostram os 78% de aprovação de Putin, o que os russos querem mesmo é ter, à frente das decisões nacionais, o homem que tirou o país do caos político e econômico da década de 90. No melancólico fim da Presidência de Boris Ieltsin, que vivia bêbado, doente ou ambos, a Rússia chegou a perder quase um terço do PIB em um ano. O país estava em moratória, os empregos desapareciam e os espertíssimos capitalistas selvagens chamados de oligarcas dividiam entre si a exploração das fabulosas riquezas do maior país do mundo. Em oito anos, o salário médio dos trabalhadores russos aumentou mais de sete vezes e a proporção de pobres caiu quase pela metade. Parte do sucesso econômico de Putin deve-se à coincidência de seu mandato com o período de aumento do preço do petróleo e gás natural, os principais produtos de exportação do país. O valor do barril de petróleo, que estava abaixo dos 30 dólares em 2000, hoje chega a 120 dólares. Mas basta evocar duas palavras – Hugo Chávez – para lembrar que bonança petrolífera não significa automaticamente progresso econômico. Putin soube aproveitar a oportunidade em benefício de seu país. Reduziu impostos, adotou uma política fiscal ortodoxa e criou um fundo com os lucros do petróleo para garantir a estabilidade econômica em períodos de vacas magras. Os oligarcas que não se aliaram a ele tiveram a opção da cadeia ou do aeroporto.

Eficiente em colocar comida na mesa da população, Putin também soube alimentar o orgulho nacional, tão ferido pelo rebaixamento à impotência da superpotência da era comunista. Quando a União Soviética se dissolveu, em 1991, o que deveria ser motivo de júbilo, pelo fim de um regime odioso, acabou se transformando em sinônimo de humilhação e perda de status. A maioria dos russos podia não ter saudade do império do mal, mas sofreu ao perder o lugar entre os grandes do mundo. O nacionalismo russo é uma força prodigiosa, que pode produzir feitos heróicos (resumo rápido: Napoleão e Hitler) e manifestações sombrias. Putin se transmutou na imagem viva desse nacionalismo, administrando a seu estilo implacável e eficiente as novas ambições semi-imperiais (encrenca para as ex-repúblicas soviéticas) e o registro de gasodutos e oleodutos. Mais de 40% da energia importada pela União Européia vem da Rússia, o que garante cooperação voluntária ou nem tanto.

Embora o passado não deva ser considerado destino, os russos têm um fascínio histórico pela figura do governante forte e centralizador. Há até uma expressão em russo específica para isso: vojd, o grande líder nacional. "Trata-se de uma herança dos tempos czaristas, quando o imperador cultivava a imagem de pai de todos, e da idolatria aos primeiros líderes soviéticos", diz o russo Alexander Zhebit, professor de política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisas de opinião mostram que 60% dos russos acreditam que o poder deve se concentrar em um só homem. A separação de poderes, um dos pilares da democracia, é considerada prioritária para apenas 9% dos entrevistados. Putin vem correspondendo às expectativas, comportando-se como o czar de todas as Rússias que abre um espaço cuidadosamente controlado ao discípulo. Antes de transmitir a Presidência a Medvedev, turbinou o cargo de primeiro-ministro: os governadores, por exemplo, passarão a responder a ele. Putin também assumiu o comando do partido Rússia Unida, que controla dois terços do Parlamento. "O comunismo acabou, mas a Rússia continua sendo um estado autoritário e longe de se tornar uma democracia plena", disse a VEJA a historiadora Anna Vassilieva, chefe do programa de estudos russos do Instituto Monterey, nos Estados Unidos. Os 56 deputados do Partido Comunista foram os únicos a votar contra a escolha de Putin para o cargo de primeiro-ministro. O líder da bancada, Gennadi Ziuganov, fez até um discurso com críticas candentes a Putin, coisa cada vez mais rara de ouvir na Rússia – e, obviamente, inexistente na era comunista.

Arquivo do blog