O monstro do porão O horripilante caso do austríaco que manteve filha e três crianças nascidas do incesto presas em porão durante 24 anos Thomaz Favaro Fotos Reuters e Reprodução | A arrogância do mal: Fritzl e a filha Elisabeth, estuprada desde os 11 anos, antes de ser aprisionada no porão | Elisabeth era uma menina de apenas 11 anos quando seu pai, Josef Fritzl, começou a violentá-la. Cinco anos mais tarde, ela tentou a primeira fuga de casa. Não conseguiu. Aos 18 anos, Elisabeth fugiu, em vão, pela segunda vez. Nessa faixa etária, o abuso sexual em família costuma cessar – a vítima perde as características infantis que atraem o perpetrador pedófilo e ganha alguma capacidade de denunciá-lo –, mas o inferno vivido pela jovem austríaca atingiu proporções inimagináveis. Temendo perder o controle sobre a filha, Fritzl sedou-a, algemou-a e a colocou em um porão blindado na casa da família. Durante os 24 anos seguintes, Elisabeth foi mantida como escrava sexual do pai. Teve sete filhos gerados pela violência incestuosa. Três foram levados por Fritzl para o mundo superior (o confortável andar de cima do casarão), onde recebiam o carinho da avó, Rosemarie, iam à escola e brincavam na piscina cercada por um jardim. Três foram mantidos no reino das sombras, o porão opressivo onde testemunhavam os abusos cometidos pelo pai-avô contra a mãe-irmã. A sétima criança, um menino, morreu recém-nascida e foi incinerada na fornalha por Fritzl. A história veio à tona na semana passada, depois que a filha mais velha da família escrava, Kerstin, de 19 anos, apareceu num hospital da cidade, em coma. O porão é freqüentemente usado como metáfora para representar perigos que rondam o lar – inclusive os desvãos sombrios do inconsciente. Mas mesmo quem já viu todas as histórias de horror, fictícias ou reais, tem dificuldade em imaginar o que foi a vida de Elisabeth e seus filhos nas sombras. É difícil imaginar também como numa cidade minúscula como Amstetten, no interior da Áustria, a vida dupla de Fritzl, que passava os dias e freqüentemente as noites enfurnado no porão, não chamava atenção. Ninguém jamais ouviu Elisabeth gritando ao dar à luz, a frio, somente com o monstro a seu lado? Ninguém jamais ouviu as crianças chorando? Ou desconfiou dos bebês que surgiam regularmente no mundo superior dos Fritzl? Revelado o horror, surgem tentativas de explicações. O sagrado respeito à privacidade alheia, o comportamento tirânico de Fritzl, que intimidava a mulher e os inquilinos – um deles confessou ter ouvido uns "barulhos estranhos" no meio da noite –, e até a complacência dos assistentes sociais que aprovaram a adoção das três crianças sem detectar o ambiente patológico da família. Reprodução | Férias na Tailândia: o bronzeado e sorridente Fritzl trouxe presentes para todos | Fritzl, engenheiro elétrico aposentado, hoje com 73 anos, planejou tudo meticulosamente. Enquanto a pobre Elisabeth ainda vivia no mundo superior, ele pediu licença à prefeitura para transformar o porão da casa em abrigo nuclear, um projeto incentivado pelas autoridades numa Áustria que então era fronteira da Guerra Fria. Depois, com a devida aprovação, providenciou instalações hidráulicas. Aos poucos, fez o bunker com porta blindada. Tinha uma boa situação financeira. Seus imóveis – duas casas, um terreno e três prédios comerciais – têm um valor estimado em 2,2 milhões de euros. Segundo o jornal austríaco Kurier, Josef chegou a trabalhar no Brasil na construção de uma hidrelétrica nos anos 60. Quando seqüestrou Elisabeth e a levou para o porão, simulou que ela tinha fugido de casa para aderir a uma seita religiosa. A mesma desculpa foi usada quando as crianças começaram a aparecer: Fritzl forçava a filha a escrever cartas à mãe pedindo que ela cuidasse dos bebês, enquanto seguia sua suposta vida alternativa. Lisa, hoje com 16 anos, Monika, de 14, e Alexander, de 12, foram adotados e criados como netos. Os vizinhos admiravam como Rosemarie, a avó, dava conta de tudo, desde participar da Associação de Pais e Mestres até levar as crianças às aulas de música. Aparentemente, nem eles nem os filhos do porão sofreram abuso sexual. Hanz Punz/AP | Natascha Kampusch: jovem que passou oito anos como escrava sexual quer ajudar as novas vítimas | A teia de monstruosidades tecidas por Fritzl começou a ser deslindada quando Kerstin, a filha mais velha, ficou doente. Fritzl só a tirou do porão quando ela já estava praticamente em coma. Deixou-a num hospital, onde os médicos detectaram uma doença degenerativa decorrente do incesto. Pela televisão foi divulgado um apelo para que a mãe da jovem abandonada comparecesse ao hospital. Elisabeth convenceu Fritzl a deixá-la ajudar a filha. No hospital, com a polícia já alertada, ela contou tudo depois de receber garantias de que nunca mais veria "aquele homem". Fritzl foi preso, confessou tudo, posou para uma foto com ar arrogante e depois se recusou a continuar falando. Em todas as suas maldades, revelou uma mistura de autoritarismo e esperteza. Os outros seis filhos que teve com a mulher saíram de casa assim que puderam. Os inquilinos eram proibidos de entrar no porão sob ameaça de processo. Quando um amigo o viu comprar roupas femininas pequenas demais para Rosemarie, ele desconversou, dizendo que tinha uma amante. Os assistentes sociais que visitaram a casa 21 vezes nada registraram. Sua ficha criminal – que incluía uma condenação por estupro, em 1969 – não foi investigada quando pediu as sucessivas adoções. Segundo uma cunhada, Fritzl descia para o porão todos os dias às 9 da manhã, dizendo que ia trabalhar na oficina. Assistia a corridas de carro na TV, almoçava com as crianças. Roupas e comida, compradas fora da cidade para não chamar a atenção dos vizinhos, entravam à noite. De viagens à Tailândia, tristemente conhecida pelo turismo sexual, ele trouxe presentes para todos. Em fotos e filmes, Fritzl, um homem vaidoso que fez implante de cabelo, aparece de sunga, bronzeado, rindo. Esse foi o segundo caso de cárcere privado em circunstâncias especialmente hediondas ocorrido no país nos últimos dois anos. Em 2006, a jovem Natascha Kampusch conseguiu fugir depois de passar oito anos num cubículo, seqüestrada e violentada por um homem, que se suicidou em seguida. Natascha quer ajudar a família Fritzl na recuperação. Os filhos do porão, Stefan, de 18 anos, e Felix, de 5, sofrem de anemia e deficiência de vitamina D provocada pela ausência de luz do sol. Kerstin perdeu quase todos os dentes e continuava em coma. Rosemarie, ao reencontrar a filha 24 anos depois, disse aos prantos: "Sinto muito. Eu não sabia de nada". | |
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