Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 10, 2008

Duas Vidas, de Janet Malcolm

Escritora de uma frase

Um belo ensaio biográfico sobre Gertrude Stein
– cuja vida é mais interessante do que sua obra


Moacyr Scliar

Carl Mydans/Time 7 Life Pictures/Getty Images
Gertrude Stein (à dir.) e Alice Toklas: duas judias na França ocupada pelos nazistas

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Trecho do livro

Escritores são em geral conhecidos por suas obras. Cervantes é lembrado por Dom Quixote, e Machado de Assis evoca Dom Casmurro. A americana Gertrude Stein (1874-1946) é associada a uma frase: "Uma rosa é uma rosa é uma rosa", do poema Sacred Emily (1913). O verso foi objeto de numerosos comentários e estudos – e de paródias como "uma rosa é uma rosa é uma cebola" (Ernest Hemingway) e "Um rato é um rato é um rato" (William Burroughs). Gertrude Stein acreditava que a repetição revelava a verdade das coisas e das pessoas – uma convicção que está dentro do espírito das vanguardas do início do século XX. O alcance e a limitação da sua obra estão nessa conexão sensível com seu tempo, que ela viveu intensamente, como fica demonstrado em Duas Vidas – Gertrude e Alice (tradução de Patricia de Queiroz Carvalho Zimbres; Paz e Terra; 216 páginas; 47 reais), da escritora e jornalista americana Janet Malcolm.

Filha de um culto e rico imigrante judeu-alemão, Gertrude viveu a infância entre os Estados Unidos e a Europa. Acabou se radicando na França em 1903 – não deixou o país nem durante a ocupação nazista. Conviveu com grandes nomes da arte moderna, como Pablo Picasso, Henri Matisse, André Derain, Georges Braque, Juan Gris, de onde resultou uma rica coleção de arte. Sua casa também foi ponto de encontro de escritores como Ernest Hemingway e Ezra Pound – a chamada "geração perdida" dos expatriados americanos. Foi ainda em Paris, em 1907, que ela encontrou Alice B. Toklas, a sua companheira da vida inteira. Com uma personalidade retraída, que contrastava com a exuberância de Gertrude, Alice foi não apenas a amante, mas a guardiã e a serviçal da escritora. Administrava a casa e datilografava os manuscritos de Gertrude.

Duas Vidas não é uma biografia, mas uma reunião de ensaios de natureza literária e biográfica, originalmente publicados na revista The New Yorker. O mais polêmico deles busca responder a uma pergunta que qualquer pessoa atenta se faz: como podiam duas judias sobreviver na França ocupada pelos nazistas? Resposta: graças a um amigo das duas, Bernard Faÿ, convicto e influente colaboracionista. Janet desnuda a ambigüidade política de Stein, que tinha simpatia pelas idéias de Francisco Franco, ditador da Espanha, e chegou a considerar Hitler "um alemão romântico". A análise que Janet faz da obra de Gertrude tampouco é condescendente. Apesar do seu esforço de autopromoção, o trabalho literário de Gertrude Stein não teve muita repercussão. Com The Making of Americans, Gertrude pretendia igualar-se ao James Joyce de Ulisses e ao Marcel Proust de Em Busca do Tempo Perdido – mas o resultado foi apenas uma obra longa e monótona. Gertrude só alcançou êxito com A Autobiografia de Alice B. Toklas (editado no Brasil pela L&PM), no qual assumiu ficcionalmente a voz de sua companheira para, na verdade, escrever a sua própria autobiografia, analisando o papel que desempenhou no lendário grupo de escritores e artistas que a rodeava. Janet admira a Autobiografia por sua qualidade irônica – seria um livro que "caçoa da imortalidade que a biografia tenta conferir a seus objetos". Em compensação, a jornalista acha maçante o experimentalismo da obra anterior de Gertrude. Foi sobretudo como personagens de sua época que Gertrude e Alice fascinaram Janet Malcolm – um fascínio que ela soube, com competência, transmitir ao leitor.

Da política para os negócios

Oscar Cabral
Marcus Gasparian: não importam só idéias – mas também livros bonitos


Duas Vidas,
de Janet Malcolm, pretende marcar uma espécie de renascimento para a Paz e Terra. Criada em 1965 por ênio Silveira – fundador também da Civilização Brasileira – e adquirida em 1973 pelo editor Fernando Gasparian, a editora foi uma espécie de casa da oposição à ditadura nos anos 70, publicando autores de esquerda como o pedagogo Paulo Freire e o economista Celso Furtado. Nos últimos anos, porém, a Paz e Terra tem vivido um certo marasmo. Depois da morte de Fernando Gasparian, em 2006, os herdeiros até cogitaram vendê-la – mas acabaram decidindo manter e renovar o legado familiar. "A editora nasceu mais como um projeto político do que como um negócio. Isso não se justifica mais hoje. O Brasil, o mundo, o mercado editorial mudaram", diz o editor Marcus Gasparian, filho de Fernando. A antiga preocupação exclusiva com o "conteúdo" se revelava até na qualidade gráfica dos livros, com capas feias e diagramação ruim. A capa dura e a paginação elegante de Duas Vidas representam uma mudança. Entre os próximos lançamentos, estão programados uma biografia do sociólogo alemão Max Weber e um livro de ensaios do diplomata Gelson Fonseca sobre a ONU. Marcus também planeja relançar os clássicos do seu catálogo – como 1789, do historiador Georges Lefebvre, e Brasil – De Getúlio a Castelo, do brasilianista Thomas Skidmore – com traduções revisadas.


LIVROS

Trecho de Duas Vidas – Gertrude e Alice,
de Janet Malcolm

PARTE I

Quando li pela primeira vez O livro de cozinha de Alice B. Toklas, Eisenhower estava na Casa Branca e Liz Taylor acabava de tomar Eddie Fisher de Debbie Reynolds. O livro, publicado em 1954, foi dado a mim por um membro do grupo de jovens pretensiosos com quem eu andava, que nada sentiam além de um desprezo divertido pela cultura média americana, e cuja revolta contra o conformismo de sua época consistia, em boa parte, em prestigiar uma loja de móveis chamada Design Research e de escrever, uns aos outros, cartas maneiristas imitando as cartas maneiristas de certos literatos homossexuais, que, então, não eram conhecidos como tais. O livro de cozinha de Alice B. Toklas se encaixava maravilhosamente bem em nosso programa de preciosismo imaturo; adorávamos seu tom irascível e pedagógico, sua arrogância e sua malevolência. "Os franceses nunca acrescentam tabasco, ketchup ou molho inglês a sua comida, não comem nenhum tipo de picles e tampouco servem pratos de carne acompanhados por rabanetes, azeitonas ou castanhas salgadas", escrevia Toklas, como se preparasse para nós um manifesto. Sua nota de pé de página de haut en bas esclarecendo que "uma marinada é um banho em vinho, ervas, azeite, verduras, vinagre etc., no qual o peixe ou a carne destinados a pratos específicos repousam por um período de tempo determinado e adquirem virtude" nos enchia de êxtase.

O próprio Livro de cozinha também repousa num banho de reminiscências sobre a vida de Toklas com Gertrude Stein, da qual deriva sua própria virtude literária. Mais que um livro de receitas ou de memórias, ele quase poderia ser chamado de uma obra de modernismo literário, uma espécie de apêndice ao tour de force de Stein, A autobiografia de Alice B. Toklas, publicado em 1933. A semelhança de tom entre os dois livros só faz aprofundar o mistério de quem influenciou quem. Stein imitava Toklas ao escrever na voz de Toklas na Autobiografia, ou foi ela quem inventou a voz, e Toklas imitou a invenção de Stein ao escrever O livro de cozinha? Impossível dizer.

Folheando meu exemplar do Livro de cozinha, indícios de velhas manchas de comida me levam às receitas que eu de fato cheguei a preparar, e não são muitas. A maioria das receitas de Toklas era e continua sendo elaborada demais e estranha demais para ser tentada (eu fiz – adorando sua perversidade – o seu Gigot de la Clinique, que exigia o uso de uma agulha hipodérmica longa para injetar suco de laranja

num pernil de carneiro, duas vezes por dia durante uma semana, enquanto a carne repousava na obrigatória marinada de vinho e ervas). Trechos sublinhados e comentários nas margens também dão ênfase às passagens – como as citadas acima – cujo esnobismo mordaz causava em mim um especial

deleite nos anos de 1950. Mas há um capítulo cujas páginas não mostram nem manchas de molho nem trechos sublinhados, e cuja limpeza dá a impressão de que quase não foi lido. Seu título é "A Comida no Bugey durante a Ocupação" e, nele, Toklas escreve sobre os anos da ocupação nazista, que ela e Stein passaram numa região provinciana do leste da França chamada Bugey – primeiramente numa bela e antiga casa próxima à cidade de Belley e depois numa outra casa antiga em Culoz, nas redondezas. Quando tive a oportunidade de reler esse capítulo, me impressionou seu tom ambíguo, não menos que sua alegria dolorosamente forçada. Como foi que o casal de idosas judias lésbicas conseguiu sobreviver aos nazistas? Por que permaneceram na França em vez de voltar para a segurança dos Estados Unidos? Por que Toklas omitiu qualquer menção ao fato de ela e Stein serem judias (e lésbicas)? Bem, nos anos 1950 ninguém fazia muito esforço para mencionar sua condição de judeu. Um anti-semitismo bem-comportado ainda era um fato da vida americana. O destino dos judeus europeus era conhecido, mas a magnitude da catástrofe ainda não havia sido percebida; o termo "Holocausto" ainda não estava em uso. Em 1954, os subterfúgios de Toklas passaram tão despercebidos quanto suas receitas de Bolo de Vitela Restrito e Caranguejos Nadadores. Hoje, esses subterfúgios nos parecem notórios, embora fortemente incompreensíveis. O que hoje sabemos sobre a guerra de Stein e Toklas torna fácil entender por que a complexa realidade de sua situação e de sua conduta não encontrou lugar no Livro de cozinha de Alice B. Toklas. "Como se um livro de receitas tivesse alguma coisa a ver com literatura", diz Toklas de sua empreitada, ao final do livro. Ou com complexidade, ela poderia ter acrescentado.

Em agosto de 1924, viajando de carro até a Riviera Francesa para visitar Picasso, Stein e Toklas fizeram um desvio para Bugey, onde passaram a noite em Belley, num hotel chamado Pernollet, que lhes havia sido recomendado por sua boa comida. A comida acabou por ser medíocre, mas elas gostaram tanto do hotel e da região que resolveram ficar – telegrafando a Picasso que se atrasariam uma semana e, por fim, nunca chegando à Riviera. Stein e Toklas voltaram ao Pernollet verão após verão (indo comer em outros lugares) e, mais tarde, começaram a procurar uma casa na região. Elas estavam preparadas para comprar, construir ou alugar, mas não conseguiam encontrar nada que lhes conviesse. Então, um dia, do outro lado de um vale, elas avistaram "a casa de nossos sonhos", como escreve Gertrude Stein na Autobiografia:

Vá e pergunte ao fazendeiro de quem é essa casa, disse a mim Gertrude Stein. Eu disse, tolice é uma casa importante e está ocupada. Vá e pergunte a ele, disse ela. Com muita relutância, fui. Ele disse, bem, sim, talvez esteja para alugar, ela pertence a uma menininha cuja família morreu e acho que um tenente do regimento aquartelado em Belley está morando lá agora, mas eu fiquei sabendo que ele está indo embora. Vocês poderiam ir falar com o administrador da propriedade. Fomos, Ele era um velho fazendeiro muito amável que sempre nos dizia allez doucement, vão devagar. Foi o que fizemos. Conseguimos a promessa da casa, que nunca vimos mais de perto a não ser através do vale, sempre que o tenente saía. Por fim, há três anos o tenente foi para o Marrocos e nós alugamos a casa que só havíamos visto através do vale e cada dia gostamos mais dela.

Stein escreveu A autobiografia de Alice B. Toklas no outono de 1932, numa espécie de paroxismo de desejo por fama e dinheiro que, até então, haviam-lhe escapado. Desde jovem ela queria "gloire", como conta sua amiga Mabel Weeks, mas seus escritos experimentais não a haviam trazido. Por fim, com a idade de cinqüenta e oito anos, ela decidiu (modo de dizer) se "prostituir" e escrever um livro em inglês normal, destinado a ser um bestseller. O fato de que ele efetivamente se tornou um bestseller talvez seja uma medida do gênio que Stein, ao longo de todo o livro, afirma ser. Que tipo de gênio ela era, é difícil definir. Havia estudado para ser médica, na Johns Hopkins Medical School, com especialização em psicologia, e foi apenas depois de ter abandonado os estudos no último ano do curso, em 1901, que começou a pensar na literatura como seu caminho para a glória. No início seu trabalho era convencional e pouco promissor, bastante afetado. Entretanto, após ter-se instalado em Paris em 1903, como se sua musa finalmente houvesse sido despertada pelo ar mais estimulante do Velho Mundo, começou a produzir os escritos pelos quais é conhecida – contos, romances e poemas que em nada se parecem com quaisquer contos, romances ou poemas já escritos, parecendo saturados de algum tipo de elixir da originalidade. Na trilogia de contos Three Lives, escrito em 1905, e no romance The Making of Americans, iniciado em 1903 e concluído em 1911, Stein ainda escreve num inglês normal, embora singular, mas, em 1912, ela já havia começado a produzir trabalhos numa linguagem que lhe era própria, que usa palavras inglesas mas

que de nenhuma outra maneira se assemelha ao inglês tal como é conhecido. "Não ser embrulhada e então esquecer da tarefa, o crédito e então o descanso daquele intervalo, pressionando a sondagem quando não há berloque não é alteração, pode agradar classificando roupas", ela escreve em Portrait of Mabel Dodge at Villa Curonia (1912), numa incursão inicial nessa linguagem. (O tema ostensivo do retrato era uma rica aventureira americana que havia recebido Stein e Toklas em sua villa italiana; ela ficou tão encantada com a peça que, de iniciativa própria, mandou imprimi-la e encaderná-la em papel de parede florentino, distribuindo-a entre as visitas que recebia em seu apartamento na Quinta Avenida.)

(...)


Copyright © Editora Abril S.A. - Todos os direitos reservados
Certifica.com

Arquivo do blog