Um belo ensaio biográfico sobre Gertrude Stein
– cuja vida é mais interessante do que sua obra
Moacyr Scliar
Carl Mydans/Time 7 Life Pictures/Getty Images |
Gertrude Stein (à dir.) e Alice Toklas: duas judias na França ocupada pelos nazistas |
|
Escritores são em geral conhecidos por suas obras. Cervantes é lembrado por Dom Quixote, e Machado de Assis evoca Dom Casmurro. A americana Gertrude Stein (1874-1946) é associada a uma frase: "Uma rosa é uma rosa é uma rosa", do poema Sacred Emily (1913). O verso foi objeto de numerosos comentários e estudos – e de paródias como "uma rosa é uma rosa é uma cebola" (Ernest Hemingway) e "Um rato é um rato é um rato" (William Burroughs). Gertrude Stein acreditava que a repetição revelava a verdade das coisas e das pessoas – uma convicção que está dentro do espírito das vanguardas do início do século XX. O alcance e a limitação da sua obra estão nessa conexão sensível com seu tempo, que ela viveu intensamente, como fica demonstrado em Duas Vidas – Gertrude e Alice (tradução de Patricia de Queiroz Carvalho Zimbres; Paz e Terra; 216 páginas; 47 reais), da escritora e jornalista americana Janet Malcolm.
Filha de um culto e rico imigrante judeu-alemão, Gertrude viveu a infância entre os Estados Unidos e a Europa. Acabou se radicando na França em 1903 – não deixou o país nem durante a ocupação nazista. Conviveu com grandes nomes da arte moderna, como Pablo Picasso, Henri Matisse, André Derain, Georges Braque, Juan Gris, de onde resultou uma rica coleção de arte. Sua casa também foi ponto de encontro de escritores como Ernest Hemingway e Ezra Pound – a chamada "geração perdida" dos expatriados americanos. Foi ainda em Paris, em 1907, que ela encontrou Alice B. Toklas, a sua companheira da vida inteira. Com uma personalidade retraída, que contrastava com a exuberância de Gertrude, Alice foi não apenas a amante, mas a guardiã e a serviçal da escritora. Administrava a casa e datilografava os manuscritos de Gertrude.
Duas Vidas não é uma biografia, mas uma reunião de ensaios de natureza literária e biográfica, originalmente publicados na revista The New Yorker. O mais polêmico deles busca responder a uma pergunta que qualquer pessoa atenta se faz: como podiam duas judias sobreviver na França ocupada pelos nazistas? Resposta: graças a um amigo das duas, Bernard Faÿ, convicto e influente colaboracionista. Janet desnuda a ambigüidade política de Stein, que tinha simpatia pelas idéias de Francisco Franco, ditador da Espanha, e chegou a considerar Hitler "um alemão romântico". A análise que Janet faz da obra de Gertrude tampouco é condescendente. Apesar do seu esforço de autopromoção, o trabalho literário de Gertrude Stein não teve muita repercussão. Com The Making of Americans, Gertrude pretendia igualar-se ao James Joyce de Ulisses e ao Marcel Proust de Em Busca do Tempo Perdido – mas o resultado foi apenas uma obra longa e monótona. Gertrude só alcançou êxito com A Autobiografia de Alice B. Toklas (editado no Brasil pela L&PM), no qual assumiu ficcionalmente a voz de sua companheira para, na verdade, escrever a sua própria autobiografia, analisando o papel que desempenhou no lendário grupo de escritores e artistas que a rodeava. Janet admira a Autobiografia por sua qualidade irônica – seria um livro que "caçoa da imortalidade que a biografia tenta conferir a seus objetos". Em compensação, a jornalista acha maçante o experimentalismo da obra anterior de Gertrude. Foi sobretudo como personagens de sua época que Gertrude e Alice fascinaram Janet Malcolm – um fascínio que ela soube, com competência, transmitir ao leitor.
Da política para os negócios
Oscar Cabral |
Marcus Gasparian: não importam só idéias – mas também livros bonitos |
Duas Vidas, de Janet Malcolm, pretende marcar uma espécie de renascimento para a Paz e Terra. Criada em 1965 por ênio Silveira – fundador também da Civilização Brasileira – e adquirida em 1973 pelo editor Fernando Gasparian, a editora foi uma espécie de casa da oposição à ditadura nos anos 70, publicando autores de esquerda como o pedagogo Paulo Freire e o economista Celso Furtado. Nos últimos anos, porém, a Paz e Terra tem vivido um certo marasmo. Depois da morte de Fernando Gasparian, em 2006, os herdeiros até cogitaram vendê-la – mas acabaram decidindo manter e renovar o legado familiar. "A editora nasceu mais como um projeto político do que como um negócio. Isso não se justifica mais hoje. O Brasil, o mundo, o mercado editorial mudaram", diz o editor Marcus Gasparian, filho de Fernando. A antiga preocupação exclusiva com o "conteúdo" se revelava até na qualidade gráfica dos livros, com capas feias e diagramação ruim. A capa dura e a paginação elegante de Duas Vidas representam uma mudança. Entre os próximos lançamentos, estão programados uma biografia do sociólogo alemão Max Weber e um livro de ensaios do diplomata Gelson Fonseca sobre a ONU. Marcus também planeja relançar os clássicos do seu catálogo – como 1789, do historiador Georges Lefebvre, e Brasil – De Getúlio a Castelo, do brasilianista Thomas Skidmore – com traduções revisadas.