Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 10, 2008

Lawrence da Arábia, de Malcolm Brown

Uma vida no limite

A nova biografia de Lawrence da Arábia tem a mesma
paixão e energia do filme clássico de David Lean e
é porta de entrada para Os Sete Pilares da Sabedoria


Eurípedes Alcântara

Reprodução
Lawrence retratado em óleo ainda fatigado depois da tomada de Aqaba
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Trecho do livro


Nenhum personagem histórico deve mais sua fama atual a um filme do que Thomas Edward Lawrence (1888-1935), ou, simplesmente, T.E. Lawrence, universalmente conhecido como Lawrence da Arábia. Mas nenhum filme também deve tanto à vida real do retratado quanto a obra épica do diretor David Lean filmada em 1962, com Peter O’Toole no papel principal. Se no Velho Oeste, como se viu no clássico filme O Homem que Matou o Facínora, "quando as lendas viram fatos, publicam-se as lendas", no deserto os fatos é que superam as lendas. Isso é o que se aprende lendo a biografia, de 228 páginas, de T.E. Lawrence, escrita por Malcolm Brown para a série Vidas Históricas, da British Library, editada agora no Brasil pela Nova Fronteira, com tradução de Sergio Barcellos e Luiz Sérgio Toledo. É a primeira biografia em português do Brasil desse inglês visionário, aventureiro, soldado e escritor, mas também arqueólogo, espião, bravateiro, arrogante e genial. O livraço de Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, ainda pode ser encontrado nas livrarias, com suas 600 páginas e tradução sofrível feita nos anos 50. A biografia escrita por Brown é leitura de preparação obrigatória para quem pretende se aventurar nos Sete Pilares. Conhecer os detalhes da biografia de T.E. Lawrence é fundamental também para entender o Oriente Médio e seus conflitos.

Uma das grandes personalidades inglesas da primeira metade do século XX, seu prestígio e fama o tornaram centro das atenções e do interesse da imprensa de seu país, do resto da Europa e dos Estados Unidos. Quando morreu, em um acidente de motocicleta, em 1935, Winston Churchill, de quem se tornara amigo e colaborador em 1921, resumiu: "Eu o considero um dos maiores homens de nosso tempo. Não é todo dia que se encontra um igual. Seu nome viverá para sempre na literatura inglesa; viverá nos anais da guerra; viverá nas lendas da Arábia". Lawrence foi um daqueles sujeitos a quem deve sua origem o ditado "Aonde vai um inglês vai a Inglaterra". Robert Falcon Scott, o explorador que morreu na Antártica na tentativa frustrada de atingir o Pólo Sul e voltar, foi um deles. O general Charles George Gordon, o "Gordon, de Cartum", outro. Não são muitos mais. Lawrence da Arábia, no entanto, tinha evidente desprezo pelos tradicionais padrões de conduta de seu país. "Você não é leal à Inglaterra?", pergunta-lhe Feisal (no filme, vivido pelo insuperável Alec Guinness), o imponente rei dos beduínos, a quem Lawrence alertava para o fato de que o plano do alto-comando era transformar os guerreiros do deserto em "apenas mais uma unidade miserável" do Exército inglês. Responde Lawrence: "Leal à Inglaterra e a outras coisas".

O que esse aluno brilhante, formado em história por Oxford, oficial da inteligência inglesa, foi fazer no Oriente Médio? A pergunta tem muitas respostas. "Eu vim porque o deserto é limpo", dizia Lawrence. O biógrafo Brown acha que seu objetivo não foi outro senão buscar elementos narrativos para escrever um grande livro. Antes de seus extraordinários feitos militares, seus colegas também não saberiam responder o que pretendia o oficial indisciplinado, amigo dos praças e de uniforme sempre descomposto. "Você é um palhaço, Lawrence." A resposta: "Nem todos podem ser o domador de leões". Ele seria muito mais do que isso. Falando árabe perfeito, vestindo-se com as indumentárias deles, Lawrence tornou-se um condutor de homens ensinando-lhes táticas de guerrilha e enchendo suas bolsas com o ouro de Londres. Ele liderou as ações militares que se tornariam conhecidas como "Revolta Árabe". Com ela derrotou os turcos, então aliados dos alemães, colocando um ponto final no Império Otomano. El Orens, como era chamado pelos árabes, chegou tenente e saiu coronel do deserto. Leal "a outras coisas", porém, quando veio a paz, em 1919, viu sua vida, vivida no gume desde a adolescência, ganhar os contornos da existência dos heróis trágicos. A realpolitik de então enterrou sem pena seu sonho de garantir independência política às tribos que liderou na Revolta Árabe.

Lawrence volta então para seu país e para as angústias básicas com raízes na ilegitimidade de suas origens, algo bem mais pesado na Inglaterra ainda vitoriana da infância. Na análise dos eventos e das inúmeras crises de sua vida vamos encontrar as reações que o fizeram diferente do comum dos mortais. É esta, afinal, a característica que dá ao personagem central do livro de Malcolm Brown qualidade teatral única. No deserto, os fatos produzidos por Lawrence superam todas as lendas.



LIVROS

Trecho de Lawrence da Arábia,
de Malcolm Brown

Introdução: um visionário

26 de agosto de 1907. Um moço de 19 anos vai de bicicleta por uma estreita trilha elevada para o norte da costa setentrional da França. À sua frente, ergue-se aquela pirâmide íngreme de mosteiro, muralha e rocha do Monte Saint-Michel. A bicicleta é avançada para seu tempo, com o guidom baixo e três marchas. O ciclista é pequeno, de constituição leve, mas musculoso, e seria surpresa se ele não estivesse pedalando velozmente com uma energia determinada e feroz. A cabeça é grande para as proporções do corpo; isto, mais a qualidade de suas feições — testa alta, queixo firme e penetrantes olhos azuis — compensam notavelmente qualquer desvantagem física, dando uma impressão geral de força e vigor. Os olhos brilham com uma curiosidade alerta e o prazer de enfrentar um desafio; e eles sem dúvida brilharam com entusiasmo particular naquela tarde de agosto, pois horas depois ele escrevia numa carta para a família na Inglaterra:

Aqui estou afinal, prestes a passar uma noite no Monte. O sonho de anos se realizou. É um crepúsculo perfeito; a maré está alta e avança cerca de seis metros pela rua. As estrelas começam a aparecer de maneira fulgurante, e a lua, dizem, está prestes a nascer. A fosforescência na água me interessa de modo especial: só a vi uma ou duas vezes antes, e nunca tão bem como hoje. Todo o mar parece pegar fogo por vários metros em torno, quando os remos caem nele...

Ele estava na França havia três semanas, primeiro em companhia de seu pai, depois sozinho. Visitara inúmeros castelos e igrejas medievais ao longo da Normandia e na Bretanha, delineando esboços, desenhando mapas mais detalhados, fotografando, subindo em perigosas ruínas recortadas em busca de vistas diferentes e mais interessantes. Em Dinard, onde vivera por algum tempo quando criança, e onde chegou após um penoso percurso vindo de Angers, foi hospedado por uma família conhecida dele, os Chaignons: "Quando falei e dei-me a conhecer houve uma cena entusiástica: todos gritavam boas-vindas ao mesmo tempo... M Corbeil também estava e quase desmaiou quando soube de onde eu tinha vindo. Dei-lhes motivo de conversa por uma semana. Deux cent cinquante kilomètres, oh lá-là, qu’il est merveilleux.

Dado o notório abaulamento da maioria das estradas francesas à época, não é de surpreender o fato de seus anfitriões ficarem maravilhados com a façanha de pedalar 250 quilômetros em um só dia.

A carta foi assinada, como todas as suas cartas daquele tempo, "Ned." Nos anos de juventude, para os amigos e a família, ele foi sempre "Ned Lawrence." Este foi o primeiro de uma série de nomes, alguns reais, outros inventados, que ele adotaria em sua curta vida.

Esteve de novo na França no ano seguinte, 1908, numa jornada bem mais ambiciosa. Desta vez, viajando inteiramente só, explorou um punhado de castelos normandos, depois rumou para o sul — perfazendo os 800 quilômetros até Avignon em dez dias — quando, vindo de Arles, parou num certo ponto onde o aguardava "uma encantadora surpresa...


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