Vitor Hugo Soares
Há duas semanas, no auge dos tremores de larga intensidade causados pela Operação Navalha, a partir da prisão do chefe da Construtora Gautama, Zuleido Veras, mais 47 integrantes do cardume de peixes graúdos e tilápias suspeitos especializados em fraudar licitações de obras (pé-de-cabra usado para o assalto aos cofres públicos), o chargista Simanca produziu um de seus achados geniais, publicado em A TARDE. Um lagarto gigante, com a cauda cortada por um golpe de machado, faz troça: “Sou da família das lagartixas: se cortam o rabo, ele cresce de novo”.
Esta semana, a carceragem da Polícia Federal, em Brasília, foi esvaziada com a soltura dos dois últimos detentos da “Navalha”: Zuleido e sua ativa auxiliar, Maria de Fátima. Beneficiado por decisão do ministro do Supremo Gilmar Mendes, o chefe da Gautama saiu sem prestar depoimento. Dia seguinte, desembarcava em Salvador, protegido por esquema operado dentro do aeroporto para livrá-lo de vaias e outros estorvos, como os jornalistas que o aguardavam no saguão por onde saíram todos os demais passageiros do vôo 1204, da Gol. Um interlúdio para lembrar da Operação Mãos Limpas, na Itália, que está completando 15 anos.
De Brasília a Salvador, segue elevada a temperatura política, mas é visível que começa a baixar a pressão na panela em que se misturam os personagens e ingredientes dos mais recentes escândalos nacionais. Prosseguem, a fogo brando, as investigações da Polícia Federal – rasgando tumores na própria carne da instituição – e os depoimentos colhidos no Superior Tribunal de Justiça, onde se acumulam provas e indícios que sustentam os noticiários com personagens ilustres: do Zuleido, da Gautama, ao presidente do Senado, Renan Calheiros. Piabas inexpressivas e peixes com porte de marlin se misturam.
Na Itália, em 1992, quando começou a Operação Mãos Limpas – a mãe de todas as ações policiais de largo alcance com forte respaldo do judiciário para combater a chamada corrupção do colarinho-branco –, foram desvendadas as conexões de chefes da máfia siciliana com o poder público. A partir daí, desencadeou-se a onda de denúncias e prisões que alcançaram centenas de políticos, empresários e membros influentes da organização criminosa. De fato, a catarse italiana havia começado nos anos 80, com a prisão, no Brasil, de Tomazzo Buschetta, o primeiro capo da longa história de crimes da organização siciliana a abrir o bico, sob garantia policial de segurança pessoal permanente e respaldo jurídico da chamada “delação premiada”.
Mas foi efetivamente a Operação Mãos Limpas, assumida no princípio por competentes e destemidos magistrados de Milão, que emprestou confiabilidade e deu repercussão interna e internacional ao impressionante embate italiano contra a corrupção, que então ameaçava pôr a pique o país e suas instituições mais caras. Durante a campanha que empolgou a opinião pública, foram expedidos quase 3 mil mandados de prisão, mais de 6 mil pessoas acusadas com provas, ou postas sob suspeita por indícios comprometedores, estiveram sob investigação. Entre elas, mais de 800 empresários, 1.978 administradores locais e mais de 400 parlamentares. Quatro haviam sido primeiros-ministros, a exemplo de Bettino Craxi (primeiro peixe grande da política italiana a ser fisgado), padrinho político de Silvio Berlusconi. Craxi fugiu para a Tunísia para não ser preso e lá morreu. Outro, Giullio Andreotti, foi acusado de envolvimento estreito com mafiosos.
Ataques e pressões explodiram de todos os lados, mas a sociedade italiana não se deixou intimidar. Apoiou indignada o combate à corrupção e ao crime organizado, que custou a vida de mais de duas dezenas de juízes e de inúmeros agentes policiais. Os sistemas Penal e Judiciário foram modificados, dotados de instrumentos mais ágeis e duros para o ataque à máfia e suas ramificações políticas, administrativas e empresariais especializadas
em assaltos aos cofres públicos. Mas passageiros procedentes de Roma, chegados a Salvador esta semana, trazem na sacola jornais italianos com notícias do lento e gradual retorno de “lagartixas” que tiveram a cauda cortada pela Operação Mãos Limpas.
Pior aqui, na Operação Navalha, onde a cadeia foi esvaziada antes mesmo de cortada a cauda dos lagartos mais encorpados, ou de outros quaisquer. Que o glorioso Santo Antônio nos proteja e não desampare a ministra Eliana Calmon.
Vitor Hugo Soares - Jornalista, é editor de Opinião do jornal A TARDE - E-mail: vitors.h@uol.com.br