O general Augusto Heleno, que comandou a missão de paz da ONU no Haiti, não tem dúvida de que as tropas brasileiras estão preparadas para uma atuação em favelas do Rio de Janeiro, depois da experiência de campo nas favelas de Porto Príncipe: “Já estamos no sexto contingente, trocando pelo sétimo.
São quadros profissionais que tiveram uma experiência que, no Brasil, não teriam jamais, uma vivência real de combate, trocando tiro, aprendendo a reconhecer o terreno, dominando o medo. Tenho certeza de que estamos preparados”, garante o general. Mas ressalta que “as diferenças marcantes têm que ser muito bem consideradas”.
A primeira é o aspecto político, “porque lá nós estamos trabalhando sob a égide da ONU, com regras de engajamento bem definidas e bem compreendidas pelas tropas”.
Depois de três anos, com troca de contingentes a cada seis meses, o treinamento já está sendo feito de maneira bastante sofisticada: “Hoje nós treinamos o contingente que vai viajar nos seis meses anteriores exaustivamente, de modo que eles já chegam lá conhecendo bem todas as normas.
Cada um deles sabe o que pode e o que não pode fazer”.
Ao contrário, no Brasil, ele chama a atenção para o fato de que o Exército “não tem até hoje amparo legal para atuar nessas operações”: “O nosso poder de polícia é limitado, limitadíssimo. Se não tivermos esse poder de polícia, o nosso sargento, o nosso soldado, vão sentar no banco dos réus. Este é um risco que nós não queremos correr: colocar nossos soldados diante de uma condenação por causa de uma operação”, diz o general, que hoje trabalha no gabinete do comandante do Exército.
Ele diz que é claro que, nas regras do ato de engajamento da Missão de Paz, “está especificado que é preciso tomar cuidado com danos colaterais.
A ação tem que ter proporcionalidade de forças, tudo isso, mas o nosso soldado sabe que se enfrentar um ato hostil, pode reagir que não será condenado”.
O general se apressa a esclarecer que, “em nenhum momento a gente pensa em tomar o lugar da polícia, que é mais adestrada para esse tipo de operação, ela conhece a bandidagem. Ninguém pode abrir mão da colaboração da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Polícia Rodoviária, da Polícia Federal”.
O que os militares querem, segundo o general Heleno, “é que no momento em que formos chamados, possamos assumir o comando da operação e coordená-la, de maneira que todos trabalhem com a sua habilidade”.
Ele lembra que mesmo o poder de polícia que foi dado ao Exército nas áreas de fronteira é contestado por alguns juristas porque foi feita por uma lei complementar, que seria um instrumento inadequado para este tipo de decisão.
Outro ponto importante destacado pelo general Heleno é que no Haiti o soldado não mora na área conflagrada.
“Ele não tem família para ser ameaçada, este é um problema seríssimo no Rio de Janeiro.” Há também uma diferença fundamental entre o tipo de bandidagem nas favelas de Porto Príncipe e as do Rio: “Lá o tráfico de drogas é mínimo, a defesa de posições dos traficantes do Rio é muito mais forte e os armamentos, mais pesados.
Eles estão defendendo um comércio que rende muito dinheiro e a reação é muito mais violenta”, ressalta o general.
O senador Cristovam Buarque (PDT), que esteve no Haiti, tem muitas dúvidas sobre a ação do Exército no combate ao crime organizado no Brasil, embora admita que já foi mais contrário e agora, ante a gravidade da situação, concorde em rever sua posição: “Do ponto de vista técnico, não tenho a menor dúvida de que o Exército virá muito mais preparado. Tive que andar de capacete e colete à prova de bala, mas vi como eles estavam conquistando a população.
Mas do ponto de vista político, da ética das Forças Armadas, é diferente. Lá eles estão enfrentando estrangeiros.
Os bandidos do Brasil são bandidos, mas são brasileiros”, analisa o senador.
Para ele, não é só o fato de que o Exército acabaria matando brasileiros: “É o de que pode acontecer de soldados brasileiros serem mortos por bandidos. Quebraria a pureza da função das Forças Armadas, que é defender o país. No Haiti, estamos a serviço das Nações Unidas”.
Para o deputado federal Fernando Gabeira, outro que esteve no Haiti e acompanhou a primeira fase, de conquista de Bel-Air, “a fórmula não é muito complicada de replicar no Rio”. Ele lembra que no início era muito difícil fazer operações conjuntas com policiais do Haiti, “pois eles avisavam os bandidos. Tiveram que apreender os telefones celulares deles e impor uma ordem à polícia”.
Já o sociólogo Antonio Jorge Ramalho da Rocha, da Universidade de Brasília, que está trabalhando no Haiti junto à Missão de Paz, acha que as Forças Armadas podem ser utilizadas nas operações de impacto “desde que definido adequadamente o marco legal de sua atuação — o que ainda não se fez no Brasil”. Ele lembra que a missão das Forças Armadas brasileiras está expressa na Constituição, nas Leis Complementares, e apenas subsidiariamente envolve o que no Brasil se chama de Garantia da Lei e da Ordem.
“A missão está clara; a visão do que se espera das Forças Armadas não está. O projeto de Força, os cenários de emprego, o dimensionamento das tropas, sua capacitação específica, nada disso está definido precisamente pelas autoridades políticas do Executivo e do Legislativo, que parecem ter outras prioridades.” Ele considera que “a omissão é das autoridades civis e remonta ao período da transição.
No Brasil, o tema da relação entre civis e militares ainda é tabu; não viramos completamente a página de 1964. A sociedade ainda não avaliou desapaixonadamente os erros e acertos do regime de 1964 e não decidiu o que quer de suas Forças Armadas.
E cabe fazê-lo”.
Entrevista:O Estado inteligente
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