História de um baixinho
Na lua-de-mel, a morena sumiu do hotel onde haviam se hospedado e nunca mais foi vista |
DÉLIO ERA baixinho e feinho com uma cara de rato. Formava com Arlindo e Durval um trio boêmio que todas as noites se encontrava no Zepellin para beber e jogar conversa fora. Arlindo era escritor, mas ainda não havia despontado no cenário literário, enquanto os outros dois, formados em direito, exerciam a profissão com certo ar de galhofa. Uma noite a patrulha policial os surpreendeu, bêbados, urinando em plena praça General Osório, e quase os levou presos. O certo é que tinham mais simpatia por quem violava a lei do que pelos "caretas" que a defendiam. De qualquer modo, fizeram carreira, a ponto de Durval se tornar juiz de direito, e Délio, dono de um lucrativo escritório de advocacia.
O problema de Délio não era tanto a sua feiúra, mas o traço caricatural, que lhe valeu o apelido de Preá. Como não lhe era fácil arranjar namoradas, valia-se das garotas de programa. Por isso, quando, certa noite, surgiu no Zepellin uma morena bonitona e sorridente, que, depois do terceiro uísque, sentou-se no colo dele, o pobre quase desmaiou de felicidade: conhecido como mão-fechada, pagou sozinho a despesa da mesa toda. Às duas da madrugada, quando o bar fechou, saiu abraçado com a morena, bêbado, aos trambolhões, não se sabe com que destino.
O namoro atingiu tais proporções que, um mês depois, Délio ergueu um brinde ao amor e anunciou que ele e a gostosa se casariam no fim do mês, o que de fato ocorreu, entre discursos exaltados e piadas maldosas.
O casamento durou exatamente uma semana. Em plena lua-de-mel, a morena desapareceu do hotel onde se haviam hospedado em Búzios e nunca mais foi vista. Délio amarrou um porre-mãe que só terminou quando o recolheram, certa manhã, inconsciente, na calçada da rua Paul Redfern, a algumas quadras do Zepellin. Durante um tempo, ele sumiu do bar e, quando voltou, parecia outro homem: ar grave, calado, bebendo pouco e rindo menos ainda. A mudança culminou na ligação com uma moça que ninguém conhecia, linda, de olhos encantadores, com quem jantou, certa noite, numa mesa em separado. Ela acariciava-lhe as mãos enquanto trocavam confidências e sorriam discretamente.
A moça se chamava Dina e, conforme se soube, separara-se recentemente de um marido rico. Ninguém entendia por que aquela linda mulher se enamorara de Délio. A surpresa foi ainda maior quando, certa noite, ela começou a flertar com um jornalista boa pinta na mesa ao lado. Délio puxou-a pelo braço, mas recebeu um violento empurrão. Depois disso, ela beijou o jornalista na boca, o que levou o namorado a lhe dar um tapa na cara, enquanto o jornalista sorria indiferente à briga dos dois. Briga essa que terminou na rua, ambos trocando socos à frente de um ônibus que quase os atropela. O motorista gritou da janela:
-Dá-lhe, baixinho!
Délio, ofendido com o tratamento, parou a briga para retrucar:
-Baixinho é a mãe!
Dias depois, estavam de novo aos beijos, numa mesa do Zepellin.
Ao chegar o Carnaval, Dina desapareceu. Délio andou pelos bares de Ipanema à procura dela, sem nada falar com os amigos. Findo o Carnaval, ela reapareceu e, sorridente, de mãos dadas com Délio, explicou que estava na casa de uma tia em Paraíba do Sul. Mas Durval me disse que a vira, na terça-feira de Carnaval, de madrugada, no Jangadeiro, aos beijos com um sujeito louro, forte, de braço tatuado.
O que importava é que Délio estava feliz, a ponto de deixar a casa da mãe e comprar um apartamento em Botafogo, para morarem juntos. Como se não bastasse, poucos meses depois, orgulhoso, anunciou que seria pai: Dina estava grávida. No prazo previsto, nasceu uma menina que, para espanto dele e de todos nós, era negra como a asa da graúna. Mas como, se os dois eram brancos?
O escândalo se espalhou pelas rodas boêmias do Luna e do Jangadeiro. O grupo que freqüentava a praia em frente à Farme de Amoedo comentava maldosamente:
-Acho que a moça é anti-racista militante, não só da boca pra fora.
-Pelo contrário, é da boca pra dentro!
Enquanto isso, Délio entrava num abatimento de que nunca mais se recuperaria. Terminou na UTI, com um câncer que lhe surgiu de repente no pulmão. Negou-se a reconhecer a filha como sua e morreu sem querer ver nem a mulher, nem a menina. Tempos depois, a própria Dina revelou a uma amiga a causa da tragédia: durante a reforma do apartamento, transara uma só vez com um pedreiro jovem que ajudava na obra. "Faço as coisas sem pensar", admitiu. "Mas foi azar meu, não acha?"