*Suely Caldas é jornalista. E-mail: sucaldas@terra.com.br
Neste momento de surgimento, em nosso continente, de uma onda enganadora de um tipo de socialismo ultrapassado (e fracassado) é oportuno reler Norberto Bobbio, o respeitado, influente e insuspeito filósofo e pensador político italiano, homem declaradamente de esquerda. Afinal, o que têm feito ou anunciado os governos da Venezuela, da Bolívia e do Equador são mesmo ações de esquerda, como apregoam seus presidentes? E para aplicar esse suposto socialismo é válido atropelar a liberdade e a democracia? Respostas a essas duas questões estão no livrinho Direita e Esquerda, que Bobbio escreveu em 1994 para contestar intelectuais europeus que sentenciavam a morte da esquerda após a queda do Muro de Berlim.
As duas ideologias são assim definidas por ele: “A esquerda persegue o ideal de igualdade, a direita considera as desigualdades entre os homens não só impossível de serem eliminadas, como também úteis, na medida em que promovem a incessante luta pelo melhoramento da sociedade.” Outra condição intrínseca à ideologia de esquerda é o respeito à liberdade de ação e expressão, que Bobbio reconhece ser cara, mas não privativa dos liberais. Ou seja, para ele, igualdade e liberdade não só se completam, como encarnam o pensamento de esquerda.
A conhecida experiência do socialismo na União Soviética é assim vista por Bobbio: “A grandiosa utopia igualitária, a comunista, acalentada por séculos, traduziu-se no seu contrário na primeira tentativa histórica de realizá-la.” É o que ele chama de “utopia invertida” e parece ser o modelo que vêm seguindo Hugo Chávez e Evo Morales e, com sinais ainda turvos, Rafael Correa, do Equador.
Estatizar e expropriar bens de empresas estrangeiras (entre elas a Petrobrás) sem a devida indenização, tomar terras de agricultores brasileiros, centralizar poder, destituir governadores de oposição por decreto, como tem feito Evo Morales na Bolívia, seriam ou não ações que resultam em maior igualdade social? Ouvindo o discurso inflamado de Morales, de suposta defesa dos índios e cocaleiros, o povo pobre da Bolívia parece acreditar que sim. Como o povo soviético acreditou por décadas, vendo, ouvindo e lendo só o que o Partido Comunista permitia. Até não mais suportar e ver o regime comunista desmoronar, agonizante, sem um único tiro, e constatar que a URSS parou nos anos 50, enquanto o mundo lá fora progredia.
Hoje, com o mundo globalizado e digitalizado e o capital perseguindo vantagens planeta afora, ações de força contra empresas só resultam em fuga de capitais, desinvestimentos e o efeito colateral do desemprego e aumento da pobreza. E onde fica o cumprimento do ideal de igualdade da esquerda? Onde fica a liberdade, se o objetivo é eliminar a oposição por decreto? Mais inteligente seria substituir a gritaria do discurso por regras bem arquitetadas, que atendessem aos interesses e carências sociais do povo boliviano, definindo condições soberanas para as empresas atuarem e explorarem recursos minerais da Bolívia.
Diferentemente de Morales, no plano econômico Hugo Chávez até agora é mais grito do que ação. Coronel do Exército, articulador de um sangrento e frustrado golpe militar em 1992, de estilo autoritário e demagogo, fala em “socialismo ou morte”, como o nosso ex-ditador João Batista Figueiredo falava em “prendo e arrebento”. Microfone e platéia à frente, Hugo Chávez mais se assemelha a Adolf Hitler e Benito Mussolini nos anos de fascismo, que Norberto Bobbio viveu para condenar: “Populista, mas não popular, o fascismo havia arregimentado o país, sufocando toda forma de livre luta política. Um povo de cidadãos, que já havia conquistado o direito de participar de eleições livres, fora reduzido à condição de multidão aclamadora, um conjunto de súditos iguais na servidão humana.” É o que visa Chávez com a proposta de governar por decreto, com seus discursos incendiários, quando amplia o império de comunicação do governo, dentro e fora da Venezuela, ameaça fechar uma emissora de TV que lhe faz oposição e quer mais um terceiro mandato para ficar no poder por 21 anos.
Neste segundo governo que se inicia, ele promete estatizar as empresas de petróleo que operam na Venezuela. A seu favor há as ricas reservas de petróleo, cobiçadas por empresas estrangeiras. Mas, no modelo socialista que apregoa e em quase nada difere daquele praticado na ex-URSS, no máximo vai conseguir realizar a “utopia invertida” imaginada por Norberto Bobbio.