Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 20, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


Lotação para o buraco

A história de Valéria, uma das vítimas
da
tragédia de São Paulo, até parece
inventada, de tão típica

A cena tem algo de... pode parecer esquisito mas, vá lá... tem algo de Serra Pelada. Um enorme buraco, misterioso, indecoroso, a exibir os intestinos do planeta. Em Serra Pelada procurava-se ouro. No buraco aberto na obra do metrô de São Paulo procuravam-se cadáveres. São dois objetivos diferentes, mas os dois lugares têm em comum o fato de tocar em certas cordas primitivas. Serra Pelada, com aquele montão de gente a fuçar suas entranhas, retomava um espetáculo bíblico em versão amazônica. O buraco de São Paulo mexe com temores ancestrais de a terra se abrir e o que estiver ao redor ser tragado para as profundas do inferno. Ou com ameaças de castigos bíblicos como os infligidos aos construtores da torre de Babel ou aos habitantes de Sodoma e Gomorra.

O buraco de São Paulo esteve dia após dia, na semana passada, nas imagens da televisão e nas fotos dos jornais e revistas. Era uma figura entre o absurdo e o aterrorizante. Ainda mais que o buraco aumentava, como uma bocarra insatisfeita, e suas paredes se mexiam como coisa viva – como, mal comparando, um estômago mostrado num ultra-som. De vez em quando retiravam um corpo do buraco. "Foi retirado hoje o corpo de fulano", noticiava-se. "Corpo de fulano" é expressão em que carnes e ossos são dissociados da pessoa propriamente dita, na suposição piedosa de que a pessoa subsiste no que tinha de mais ela-mesma, a "alma".

Na terça-feira, foi retirado o corpo de Valéria Alves Marmit, de 37 anos, três filhos. Junto, emergiu sua história. A história de Valéria até parece inventada, de tão típica. Soa a criação de ficcionista interessado em reunir num tipo único as características de uma ampla parcela da população. Ela nasceu no Rio de Janeiro. Ainda pequena, ficou órfã de pai e mãe e foi levada para Aracaju, para ser criada pela avó. Mais alguns anos e, ainda criança, muda-se para São Paulo. Ei-la inserida no quadro das migrações brasileiras. Continuava a ir gente para Serra Pelada mesmo quando ali não havia mais ouro. Continua-se a ir para São Paulo mesmo não havendo ali mais empregos.

Valéria foi tratada pela imprensa como "advogada", mas na verdade ainda não era bem uma advogada. Terminou o curso de direito em 2005, mas para poder exercer a profissão faltava ser aprovada no exame da OAB, e sabe-se como é difícil passar no exame da OAB. Enquanto isso, ia prestando "serviços externos" a um escritório de advocacia, segundo explicou um parente. Valéria fez o curso de direito na Uniban – Universidade Bandeirante. É uma universidade paga, naturalmente – as públicas são para pessoas mais bem aquinhoadas no nascimento. Valéria pagou a faculdade a duras penas. No 4º ano parou de pagar, e a faculdade quis impedi-la de freqüentar o curso. Conseguiu continuar graças a um recurso na Justiça. Por aí se deduz o valor que dava ao diploma de direito. É o que corre entre os brasileiros – um diploma vale tanto quanto uma pepita de ouro. (Nota: o curso de direito da Uniban não consta da relação de cursos recomendados divulgada na semana passada pela OAB.)

Valéria era dessas pessoas que moram longe. É uma mania dos brasileiros, essa de morar longe. E era uma mulher que criava os filhos sem marido. É uma mania das brasileiras, criar os filhos sozinhas. Morava em Carapicuíba, uma das mais pobres cidades-dormitório dos arredores de São Paulo, num apartamento da Cohab. Tinha uma filha de 17 anos e dois filhos gêmeos de 11, os três dividindo com ela os 40 metros quadrados do apartamento. A filha era de um casamento, os gêmeos de outro.

Valéria deixa de ser típica em duas coisas. Primeiro, que tinha um ex-marido de quem continuava amiga e que lhe prestava assistência – tanto que ele, Wagner Marmit, ficou de plantão no buraco, enquanto não achavam o corpo, e depois tomou as providências necessárias. Segundo, que gostava de poesia. Ultimamente andava lendo García Lorca, de acordo com o ex-marido. Ela volta a ser típica na mania de tomar múltiplas conduções, a cada dia. Na sexta-feira 12, ao sair do emprego, tomou uma van. Pensou que fosse a mesma lotação que, habitualmente, a deixaria perto da estação onde embarcaria no trem para Carapicuíba. Em vez disso, era uma lotação para o buraco.

A chance de alguém, entre os 20 milhões de habitantes da Grande São Paulo, mais os que estivessem de passagem na região, estar ali, exatamente na hora em que a terra se abriu e engoliu vans e caminhões, era provavelmente menor do que ganhar na loteria. Valéria foi contemplada com essa premiação ao contrário. Morreu instantaneamente, de politraumatismo, segundo indicaram os exames do Instituto Médico Legal. Como ocorre em geral com as vítimas de tragédias, especialmente tragédias tão incomuns como essa de uma cratera se abrir no asfalto, saiu do anonimato pela porta errada.*

*As informações sobre Valéria Marmit foram extraídas de textos das repórteres Laura Capriglione, na Folha de S.Paulo, e Adriana Carranca, em O Estado de S. Paulo.

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