Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 20, 2007

A História Trágica do Doutor Fausto, de C. Marlowe

O inferno é onde estamos

Fausto é uma amostra do ceticismo radical
de Marlowe – que, segundo uma teoria
maluca, seria o verdadeiro Shakespeare


Jerônimo Teixeira

EXCLUSIVO ON-LINE
Trecho do livro

William Shakespeare, como se sabe, não escreveu a magnífica obra que a tradição lhe atribui. Era, afinal, o simples filho de um fabricante de luvas, que não teve educação além da escola básica. O verdadeiro autor foi Christopher Marlowe, dramaturgo, herege e espião a serviço do reinado de Elizabeth I. Nascido em Canterbury, em 1564 – dois meses antes de Shakespeare vir ao mundo, em Stratford –, Kit Marlowe, como os amigos o chamavam, também vinha de origem modesta – seu pai era sapateiro –, mas teve educação universitária. Escreveu e assinou com o próprio nome alguns belos poemas e cinco peças, incluindo a primeira versão literária do mito de Fausto (tradução de A. de Oliveira Cabral; Hedra; 120 páginas; 18 reais), agora editada no Brasil numa coleção de bolso. No serviço secreto, Marlowe adquiriu a intimidade com o poder necessária para criar as intrigas palacianas de peças como Hamlet e Macbeth. Essas tragédias, claro, são posteriores à suposta morte de Marlowe numa briga de taverna, em 1593. Mas essa foi a grande jogada do escritor: perseguido por suas idéias pouco ortodoxas sobre religião, ele encenou a própria morte, para depois se exilar na Europa continental, de onde mandava suas obras-primas para que o ator William Shakespeare as assinasse, como um mero e servil testa-de-ferro.

De todas as hoje desacreditadas teorias que colocavam em dúvida a autoria das obras de Shakespeare, a mais extravagante é a que está resumida no parágrafo acima. Foi divulgada num livro dos anos 1950, O Assassinato do Homem que Era Shakespeare, de um tal Calvin Hoffman, um empresário da Broadway. É uma peça fictícia digna das mais amalucadas teorias conspiratórias, e se há algo de minimamente crível nela é apenas porque Marlowe, com sua vida dupla de poeta e espião e sua morte violenta, permanece uma figura misteriosa. Sua obra, como o leitor brasileiro poderá conferir em Fausto, também traz perturbadoras zonas de sombra.

Fausto, o sábio alemão que vende sua alma ao demônio Mefistófeles em troca de conhecimento e poder, não foi criação de Marlowe. É uma lenda popular cuja autoria se perde no tempo. No século XVI, a história se tornou conhecida por meio do Faustbuch (O Livro de Fausto), obra anônima alemã que foi traduzida na Inglaterra. Era um texto moralista, provavelmente escrito por algum luterano furioso. Marlowe deu lustro estético à obra e resgatou a dignidade do personagem – que, no entanto, ainda desce ao inferno na cena final, de muito impacto junto ao público da época. Caberia a outro alemão, Wolfgang von Goethe, salvar o atormentado Fausto, que em seu poema dramático é resgatado pelos anjos no ato final.

A História Trágica do Doutor Fausto conserva alguns arcaísmos do teatro religioso medieval. Há personagens alegóricos, como os Pecados Capitais, que desfilam no palco fazendo discursos retóricos. Mas Fausto não é apenas um miserável pecador punido num drama cristão. Ele é também um pensador radical em seu ceticismo, como se vê no seu monólogo inicial, em que rejeita como inúteis todas as disciplinas tradicionais nas universidades de então – teologia, lógica, medicina – para abraçar a magia e o ocultismo. O crítico inglês Ian Watt observou uma circunstância histórica no fundo desse drama: o desemprego acadêmico. Na virada do século XVI para o XVII, a Inglaterra conheceu uma expansão universitária, da qual o próprio Marlowe se beneficiou – teve uma bolsa de estudos em Cambridge. Os acadêmicos, porém, não encontravam lugar na sociedade e acabavam formando um grupo marginal.

O próprio Marlowe era uma expressão dessa desilusão – embora tivesse resolvido o problema do desemprego ainda na universidade, alistando-se no serviço secreto. A natureza de suas atividades é ainda obscura. Provavelmente, teria de se infiltrar entre os católicos, recolhendo informações sobre qualquer conspiração "papista" contra a Inglaterra anglicana. Figura herética (reza a lenda que ele gostava de pôr em dúvida a reputação da Virgem Maria), Marlowe também foi um dramaturgo de sucesso, que despertou a inveja caluniosa de competidores. A morte do poeta tem um componente patético: ele envolveu-se numa briga de taverna, tentou acertar o contendor com um punhal, mas errou o golpe e acabou furando a própria cabeça. O golpe de azar que encerrou a carreira de Marlowe foi um prato cheio para os seus adversários puritanos. Esses piedosos panfletistas celebraram a vingança divina: a mão que escrevia abominações contra a religião acertou com o punhal o cérebro que concebia essas heresias.

A tradução de A História Trágica do Doutor Fausto que chega agora às livrarias é portuguesa. O verso branco (sem rima) que Marlowe consolidou na dramaturgia inglesa – e que Shakespeare expandiria em sua obra monumental – é vertido em decassílabos, nem sempre com a fluidez do original. Há alguns versos um tanto canhestros, como "Fausto, hás de agora / Ser condenado, e salvo ser não podes". Mas o livro vem em boa hora. As criações de Shakespeare parecem elevá-lo acima de sua época, como se o bardo houvesse escrito isolado numa bolha de genialidade, e não em uma época de rara efervescência literária. Shakespeare conviveu e competiu com vários dramaturgos talentosos que infelizmente ainda não contam com boas traduções – Ben Jonson, o rival mais jovem, é uma dessas ausências escandalosas nas livrarias brasileiras. O ceticismo de Fausto ainda cala fundo entre os leitores de hoje. Lembra a banalidade existencialista do Sartre de Entre Quatro Paredes – "O inferno são os outros"? O Mefistófeles de Marlowe vai bem mais longe: "O Inferno é sem limites. Circunscrito / Não está a um lugar, pois, onde estamos, / Inferno é, e sempre aí estaremos".

Um mito do individualismo

A lenda de Fausto em suas várias versões literárias

A História Trágica do Doutor Fausto (1588), de Christopher Marlowe
É a primeira versão literária da história do sábio que vende sua alma ao demônio Mefistófeles. Marlowe conservou a punição final no inferno, mas deu dignidade trágica a Fausto

Fausto (1808),
de Wolfgang von Goethe

A versão mais conhecida do mito é obra do alemão. Em seu poema dramático, Fausto acaba redimido – na última hora, os anjos logram Mefistófeles e levam a alma do sábio para o céu

Doutor Fausto (1943),
de Thomas Mann

O personagem acadêmico se transforma num músico moderno, Adrian Leverkühn. É uma versão laica do mito: o pacto dispensa demônios, e o inferno vem na forma da sífilis que mata o protagonista

Primeiro Fausto,
de Fernando Pessoa

O poeta português deixou inconclusa sua versão do mito, à qual se dedicou durante boa parte da vida. A obra fala, segundo o próprio Pessoa, do embate entre a inteligência – representada por Fausto – e a vida
Fotos Corpus Christi College Cambridge , AFP, Biblioteca acional Lisboa

Arquivo do blog