Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 13, 2007

Roberto Pompeu de Toledo Hugo Chávez e a morte


Ao inaugurar novo mandato, o presidente da Venezuela se oferece em holocausto

A morte foi a tônica do discurso com que, na semana passada, Hugo Chávez tomou posse de seu terceiro mandato como presidente da Venezuela. "Pátria, socialismo ou morte!" foi o grito de guerra com que encerrou o discurso. Então ainda tem gente capaz de dizer essas coisas? Tem gente capaz de construir uma frase em que, para honrar "a pátria e o socialismo", ou "o pão e a liberdade", ou mesmo "a família e a propriedade", se invoca essa última linha de defesa que é a escolha – ou isto ou a morte? A frase fere ainda mais os ouvidos quando dita na língua espanhola, em que morte é muerte, algo muito mais terrível, como se sabe, muito mais definitivo e assustador.

Isso não foi tudo nem foi o principal. No brado citado, a morte é invocada de modo impreciso – fica a critério do ouvinte interpretar se a morte seria a do próprio Chávez, da Venezuela como nação ou do povo venezuelano. Antes disso, no entanto, Chávez já se oferecera em sacrifício, então inequivocamente a si mesmo, por duas vezes. E em ambas as vezes de permeio a um frenesi retórico de avassaladoras proporções. "Juro ante esta maravilhosa Constituição, juro ante os senhores, juro por Deus, juro pelo Deus dos meus pais, juro pelos meus filhos, juro por minha honra, juro por minha vida, juro pelos mártires, juro pelos libertadores, juro por meu povo e juro por minha pátria que não darei descanso ao meu braço nem à minha alma ao entregar meus dias, minhas noites e minha vida inteira na construção do socialismo venezuelano", disse, na primeira dessas vezes. A lista de "juros" contém curiosidades como a inclusão de dois deuses – o dele próprio e o de seus pais – e a atribuição da qualidade de "maravilhosa" a uma Constituição que ele quer mudar para garantir-se reeleições sem limite. Também há o empenho dos filhos e da honra, dos mártires e dos libertadores, embrulhados num dramático pacote e jogados à mesa como a última aposta de um desesperado jogador de pôquer.

A segunda vez em que o presidente venezuelano se ofereceu em sacrifício também começa com alguns "juros": "Juro por Cristo, o maior socialista da história, juro pelas dores, amores e esperanças, que farei cumprir com os mandatos supremos desta maravilhosa Constituição, com os mandatos supremos do povo venezuelano, ainda que à custa de minha própria vida e de minha própria tranqüilidade". Jesus Cristo, que, segundo um livro na lista dos mais vendidos, é o maior psicólogo da história, agora acumula esse título com o de maior socialista, e a Constituição merece pela segunda vez o tratamento de "maravilhosa", junto com a promessa, que de antemão se sabe vã, de que será respeitada. Isso soa ao elogio que o impudente faz à mulher no momento mesmo em que sai para traí-la. A "própria vida" e a "própria tranqüilidade" são os produtos com que o orador culmina sua entrega.

Não é difícil imaginar quão sublime Chávez estava se achando ao oferecer-se em holocausto, de corpo e alma, e de quebra até lançando mão das dores, dos amores e das esperanças. O que conseguiu foi elevar a novas alturas o blablablá e a gabolice tão típicos da latinidad. Este é um continente em que as proclamações "até a vitória final" e "até a morte" preenchem o vácuo da inoperância e das escolhas erradas. Chávez faz da combinação entre religião e ideologia, ambas misturadas, como é do gosto tanto de uma quanto da outra, com a oferta do sacrifício da morte, o combustível de sua tagarelice. Dizem que nosso apego à vã retórica é herança dos colonizadores ibéricos. Pois os ibéricos se curaram. O presidente venezuelano devia prestar atenção ao que ensina o espanhol Felipe González: "O grande problema da ideologia é que ela obscurece o debate das idéias, porque vê a redistribuição de riqueza como uma questão moral, quando é uma questão de eficiência".

Este continente já conheceu um presidente – Santa Anna, do México – que enterrou com honras militares a perna que perdera no campo de batalha. Mais recentemente, um caudilho da safra populista dos anos 1950 – Velasco Ibarra, do Equador – concedeu a si próprio o título de personificación nacional. Chávez ama invocar a figura de Bolívar, mas o que conseguiu até aqui foi alinhar-se entre os tipos exóticos que povoam a história latino-americana. Agora vem com essa história de bancar as apostas com a própria vida. "O patriotismo é o último refúgio dos canalhas", diz a frase tantas vezes citada de Samuel Johnson. Dizer-se disposto a sacrificar a própria vida é a apelação suprema dos demagogos.

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E por falar em morte... Sem retórica, pois os anglo-saxões não são disso, George W. Bush anunciou que vai reforçar em 20.000 soldados o contingente americano no Iraque. Fica no ar a pergunta que, com retórica, pois às vezes até os anglo-saxões são disso, o senador e ex-candidato a presidente John Kerry formulou, décadas atrás, a respeito do Vietnã: "Quem será o último a morrer por um erro?". Acrescente-se, a favor de Kerry, que no seu caso a retórica é certeira.

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