Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Pre(visões) - ROBERTO DaMATTA



O Globo
17/1/2007

Enquanto não entramos em 2007, jogo os meus búzios, corto o meu tarô, consulto os oráculos e coleciono mensagens de um copo animado pelos desencarnados. A neblina que paira sobre o mundo, entretanto, é resistente. As técnicas divinatórias são lamparinas de azeite, diante da densidade da névoa trazida pelo século 21.

Para quem foi, como eu, um leitor embalado pelo otimismo progressista e pela engenhosidade utilitária de Júlio Verne, o século 21 era o futuro. Tudo o que vi, li e me foi prometido iria ocorrer no famoso milênio. Daí o medo do terrível: "de mil passarás, mas a dois mil não chegarás!", que ouvi de uma professora religiosa e severa, moto que esvaziava no seu pessimismo milenarista as grandes promessas do novo século.

Mas o tempo passou, as crises da Terceira Guerra Mundial se desfizeram; em vez de um mundo socialista, como previam as cartilhas, o que aconteceu foi um tremendo desmascaramento orwelliano do 1984; desmanchou-se a União Soviética; caiu o Muro de Berlim. E, o final das contas, quem deu um formato inesperado ao planeta foi uma imprevista globalização financeira tocada a consumismo fanático, ao lado de um messianismo islâmico igualmente não antecipado. Tudo isso tendo como cenário o dado maior deste mágico 2007: o palpável risco de destruição do planeta.

Para quem imaginava o século 21 como o marco das utopias, como o momento em que as doenças, a pobreza, o fanatismo e até mesmo a morte seriam finalmente derrotados, esses cruzamentos computadorizados de extrema pobreza, extremada violência, doença e fome na África, no Haiti e no Brasil, com obesa abundância e consumismo desenfreado nos Estados Unidos e na Europa ocidental, assombram.

Quem teria sido capaz de prever essa embrulhada brasileira de uma vida urbana afinal majoritária, mas sem a menor segurança e civilidade? Quem poderia antever esse nosso mundo inflado de atrações, mas, ao mesmo tempo, assolado pela incúria administrativa e pela mendacidade política como valor? Se o século 20 acabou com Deus, como é que hoje vivemos tantas guerras religiosas? Como é que a previsão de um século 21 paradisíaco terminou nessa enorme lista de violência, de conflitos insolúveis e de tanta dor, perda e sofrimento?

Cá estamos diante do sétimo ano do novo século e o que aparece diante de nós é o mais desolador prognóstico de destruição.

O bicho-homem, a espécie sem especificidade porque destituída de natureza, de programa geral e de instinto; o macaco nu - onívoro, inventor da roda, da música, da piedade e da bomba atômica - começou ceifando o mato em torno de suas cabanas e, tendo construído a "aldeia global", vai liquidando o planeta por meio de uma exploração impiedosa de todos os seus domínios. A terra deixou de ser mãe generosa para ser a propriedade privada de estados-nacionais e de companhias multinacionais. Enfim, o senhor do mundo, aquele que vivia à mercê dos deuses e que foi feito à imagem e semelhança do seu Criador, conseguiu, viva, liberar-se de si mesmo. Tudo o que lhe havia tolhido a existência de felicidade individual foi colocado entre aspas. Livre para amar tanto o caos quanto a ordem, o senhor do mundo vai finalmente consumar o seu maior feito: a destruição do próprio planeta. Do nicho onde vive, da terra-mãe que o sustentou e lhe viu nascer, do cenário onde desempenhou tantos papéis, lutou tantas batalhas, gozou e sofreu em tantas realizações, viveu e morreu em tantas tragédias.

O que os oráculos anunciam em 2007 não é simplesmente que o "político X vai morrer", que quem é de Touro vai ter um grande ano ou que a Mariazinha vai encontrar um grande amor. É, puxa vida, o fim do planeta!

Graças a um consumismo estabelecido como religião, a nave na qual ele tem navegado pelo infinito do universo está sucumbindo. E como que para aumentar sua glória e abrilhantar, como uma valsa de Strauss, a sua capacidade destrutiva, o fim do planeta não resulta de um conflito lógico entre blocos representativos do Bem ou do Mal, da Liberdade e da Submissão, ou do "nosso" Deus e do "deles". Resulta precisamente da hegemonia da parte sobre o todo, dos atores sobre a peça, do padre sobre a missa, da palavra sobre o texto.

Corta para o ano 27777 e.C. (vinte e sete mil, setecentos e setenta e sete da Era do Consumo).

O bicho-homem não morreu. Salvou-se do planeta que destruiu numa imigração que levou os mais ricos e os mais corretos - os desenvolvimentistas, os consumistas, os acumuladores, os planejadores (e, eu quase digo, os economistas), para outros mundos. Primeiro colonizaram alguns planetas do seu sistema solar, depois invadiram mundos em outros sistemas.

Hoje, neste glorioso ano mágico de vinte e sete mil e setecentos e setenta e sete e.C, estamos todos orgulhosos de termos inventado planetas-lixo, luas-esgoto, asteróides-latrinas, e sóis exauridos de calor e de luz. Pois, em todos os lugares por onde passamos, deixamos em nome da lei, da ética, do mercado, do progresso, da revolução, da justiça, da política, de Deus, da pátria, e do povo, um rastro inigualável de morte e destruição. Ao fim e ao cabo, sabemos, as estrelas surgem e fenecem, e até os deuses nascem e morrem, mas só o bicho-homem, com seu glorioso e inabalável pendor destrutivo, continua a reinar absoluto pelos séculos e séculos, amém.

Arquivo do blog