N ão poderia faltar uma dose de baixaria na lamentável e inútil conferência de cúpula do Mercosul, no Rio de Janeiro, encerrada ontem. Quem previu uma reunião apenas improdutiva e marcada pela retórica terceiro-mundista pecou por otimismo. A realidade foi pior. O presidente da Bolívia, Evo Morales, meteu o bedelho em assuntos internos da Colômbia, criticando sua orientação econômica e seus vínculos com os Estados Unidos. O presidente colombiano, Álvaro Uribe, foi obrigado a responder. O guru de Morales, o venezuelano Hugo Chávez, interveio em sua defesa, acusando Uribe de haver exagerado na resposta. Nenhuma surpresa.
Morales e Chávez não vieram ao Brasil para discutir de forma civilizada projetos de interesse comum, mas para ditar palavras de ordem e proclamar novos tempos para a região. O presidente venezuelano disse ter vindo para descontaminar o Mercosul do neoliberalismo e atacou os Estados Unidos, o FMI e o Banco Mundial. Seu acólito boliviano, que já dissera, em Cochabamba, que seu país quer ingressar no Mercosul para fazer nele 'profundas reformas', repetiu a mensagem de Chávez e denunciou o mau desempenho das economias ainda contaminadas pela doença neoliberal. Se o anfitrião do encontro, presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tiver tido um instante de lucidez, deve ter corado até os artelhos com as agressões e gozações que sofreu do companheiro Chávez. Mas é pouco provável.
O novo presidente do Equador, Rafael Correa, também da turma neobolivariana, aproveitou a ocasião para pedir assessoria argentina sobre renegociação - calote, em linguagem normal - da dívida externa. Os ministros de Economia Felisa Miceli, da Argentina, e Ricardo Patiño, do Equador, reuniram-se no Rio para formalizar o acordo de assessoria.
Assuntos importantes para o Mercosul, como se previa, ficaram em plano muito recuado. A proposta brasileira de condições especiais de comércio para as economias menores do bloco, Paraguai e Uruguai, ficou suspensa, por pressão argentina. O governo argentino também se opôs à admissão da Bolívia em condições favorecidas. Os dois assuntos foram entregues a grupos de trabalho. Embora derrotado, o presidente Lula não deve ter ficado muito infeliz. Em seu primeiro mandato foram criados 96 grupos de trabalho, para estudar assuntos tão variados quanto a pesca da sardinha verdadeira e o atendimento de grande número de alcoólatras pelo SUS.
Mas não só o governo argentino se opôs à concessão de condições especiais de comércio - mudança na tributação e na exigência de conteúdo regional - aos dois sócios menores. A Confederação Nacional da Indústria não havia sido consultada e estrilou. A diplomacia brasileira, portanto, não havia combinado o jogo nem com os parceiros externos nem com o público interno. Uruguaios e paraguaios, naturalmente, não gostaram e isso deve ter reforçado sua disposição de buscar um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. Como consolação, ganharam a promessa de financiamento para obras de infra-estrutura e para programas de tecnologia.
O presidente Lula e o chanceler Celso Amorim gastaram parte de sua retórica defendendo a inclusão da Venezuela, já consumada, e a da Bolívia, ainda em negociação. É preciso, segundo o presidente Lula, aceitar a diversidade no Mercosul. Mas ele parece ter esquecido um detalhe: essa diversidade é limitada, até agora, por um compromisso de preservação das instituições democráticas.
Uma das poucas manifestações de bom senso foi o pronunciamento da presidente chilena, Michelle Bachelet. Não basta, segundo Bachelet, ficar falando sobre integração sul-americana. É preciso desenhar um roteiro de cooperação. É necessário formular um marco normativo para um espaço econômico, definir o caminho para uma zona de livre-comércio no prazo de dez anos, investir na criação de uma infra-estrutura regional e trabalhar, desde logo, para maior liberalização do intercâmbio de bens.
Não se avançou em nenhum desses temas, exceto pela assinatura de um compromisso entre Brasil e Venezuela com a fixação de prazos para estudos, até dezembro de 2008, de um projeto de gasoduto até Recife. Também para isso não seria necessário armar um circo tão amplo diante da Praia de Copacabana. A paisagem, pelo menos, deve ter compensado o esforço.