Os abalos por que vem passando o subcontinente, com os sucessivos golpes antidemocráticos desferidos pelo venezuelano Hugo Chávez e as tentativas ou ensaios de imitá-lo, protagonizados pelo boliviano Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa, exigem do governo brasileiro um frio reexame de sua política regional, a partir de uma perspectiva “descontaminada”, como diria o caudilho de Caracas, na qual a desejada projeção da liderança pessoal do presidente Lula na América do Sul há de se conjugar necessariamente com os interesses de longo prazo do País no plano global. Antes que o chanceler Celso Amorim considere a defesa desse imperativo estratégico uma modalidade infundada de mercoceticismo em relação aos esforços integradores da diplomacia lulista, diga-se desde logo que não se está propondo nada parecido com uma guinada de 180 graus nas relações do Brasil com aqueles países vizinhos, a começar da Venezuela, cada vez mais percebidos como os neogolpistas da cena latino-americana.
Não são desprezíveis os vínculos econômicos entre Brasília e Caracas. Algumas das maiores empresas brasileiras de construção pesada, por exemplo, fecharam contratos vultosos para a modernização da infra-estrutura venezuelana. E há, sobretudo, as possibilidades de cooperação no setor energético a justificar que uma política de boa vizinhança com a Venezuela seja, para o Brasil, razão de Estado. Nem por isso, contudo, o Planalto pode aceitar mansamente, como vem fazendo, as agressões e as gozações do ditador venezuelano - a qualificação é inevitável depois da aprovação da Ley Habilitante, quinta-feira, pela Assembléia Nacional Venezuelana (ver editorial abaixo) -, que conseguiu incluir o seu país no Mercosul antes de mais nada para dispor de mais um espaço onde pudesse saciar suas ambições hegemônicas e exibir seus pendores histriônicos em mais um palco onde pudesse desfilar o seu fanfarrônico “antiimperialismo”.
Imagine-se como o coronel reagiria se, numa reunião de chefes de Estado do Mercosul, em Caracas, o presidente Lula passasse, em público, uma descompostura no seu conselheiro para assuntos internacionais, com gabinete no Palácio Miraflores, a sede do governo venezuelano. Pois foi o que Chávez fez, quinta-feira, com a maior sem-cerimônia, na abertura da cúpula do Mercosul, no Rio de Janeiro, ao espinafrar o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia. Na espinafração sobrou para Lula uma reprimenda em tom de gozação. Imagine-se, ainda, como Chávez se comportaria se, no mesmo hipotético encontro de Caracas, o presidente brasileiro debochasse do nome que ele escolheu para o seu “socialismo do século 21”, como Chávez gozou o escolhido por Lula para o pretendido organismo multilateral que reuniria os países sul-americanos - Comunidade Americana do Sul Associada: a sigla Casa. Lula poderia, pelo menos, ter tido a coragem de criticar a idiotice da gracinha do caudilho venezuelano: “Se tens um cavalo e o batizas de Florzinha, acredito que o estás matando. Se pudesse ele te daria um coice.”
Até porque Chávez traz em si “uma boa dose de desequilíbrio mental”, como assinalou anteontem no Estado o ex-ministro de Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia - que o conhece bem -, no artigo Chávez e o Brasil, não se trata de fazer um cavalo de batalha com o seu circo. O problema é a sua convicção de que pode olhar Lula de cima para baixo, pois ele, Chávez, é que vem comandando as relações entre ambos os países. Esse é um motivo para o Brasil passar a se relacionar com a Venezuela a partir da percepção clara das diferenças mútuas, como enfatiza Lampreia, e pela “distinção de interesses fundamentais que existe hoje entre os dois países”. A principal diferença não é o “socialismo do século 21” professado por Chávez ou o grau de estatização da economia venezuelana. A diferença está na marcha batida do coronel para se tornar ditador vitalício e transformar países vizinhos em satélites da Venezuela.
O segundo motivo para o Brasil mudar é o perigo de ser confundido pelos investidores, como alertou Charles Dallara, diretor-geral do Instituto de Finanças Internacionais, que reúne 360 bancos de 60 países. “Seria lamentável que as percepções globais sobre a América Latina fossem afetadas por países como Venezuela, Bolívia e Equador”, observou. “Espero que os investidores continuem diferenciando os países, mas o risco existe.”