Há quem esteja, no Brasil, comparando a Lei Habilitante, com que a Assembléia Nacional venezuelana presenteou o coronel Hugo Chávez, com as medidas provisórias aqui em uso desde 1988. Tal comparação só se faz por ignorância ou má-fé. A edição de medidas provisórias está limitada, por definição constitucional, a temas de relevância e urgência que dizem respeito à governabilidade e o presidente da República não pode usá-las para “reconfigurar” a Constituição. Além disso, as medidas provisórias são submetidas ao Congresso e perdem efeito se não forem apreciadas ou aprovadas. Trata-se de um instrumento compatível com uma democracia representativa, um Estado Democrático de Direito.
Já a Lei Habilitante é uma outorga de poderes absolutos feita pela Assembléia Nacional - por enquanto em primeiro turno - ao presidente da República. A Lei Habilitante, como foi aprovada, é um instrumento que transforma o coronel Hugo Chávez, de fato e de direito, num ditador. Nos momentos de grande perigo, o Senado Romano transferia temporariamente seus poderes para um ditador que ficava responsável pela superação da emergência. Na Venezuela, até que o presidente Hugo Chávez começou a englobar em suas mãos todos os poderes do Estado, a república e a democracia não estavam em perigo. Agora, estão em xeque-mate.
Os poderes que os membros da Assembléia - todos eles, sem exceção, partidários de Chávez - concederam ao presidente permitem-lhe mudar todos e cada um dos aspectos da vida política, econômica, social e administrativa da Venezuela. Nada fica fora do alcance discricionário do presidente da República. Nem a vida particular de cada cidadão.
A ele é permitido, sem dar satisfações a ninguém, “adaptar a legislação existente à construção de um novo modelo econômico e social”. Ele pode, também, “reinterpretar os direitos fundamentais e princípios econômicos segundo a nova concepção de Estado social de direitos e de justiça”.
Que novo Estado, que novo modelo são esses? Trata-se do “socialismo do século 21”, uma conseqüência natural do “bolivarianismo”. O leitor não se sinta ignorante. Esses rótulos são propositadamente vagos e confusos - não fazem sentido. Resultam de uma mixórdia ideológica feita para mistificar os venezuelanos, especialmente os mais pobres, e os basbaques que no exterior esperam o ressurgimento do Dom Sebastião do socialismo, mas que pode ser reduzida a algo simples de entendimento: quem manda na Venezuela é o coronel Chávez e ele fará do país o que quiser.
E o que ele quer, nesta etapa, é acabar com os vestígios que ainda restam da democracia representativa e jogar cal sobre o capitalismo e a economia de livre mercado.
Assim, foi ele investido do poder de “ditar normas com o objetivo de atualizar e transformar o ordenamento legal que regula as instituições do Estado”. E, para que não haja dúvidas sobre suas intenções, compromete-se a adequar a estrutura da administração para permitir o “exercício direto do Poder Popular” e a “aprofundar o princípio da democracia participativa e protagônica”. Esse é o processo típico de construção das ditaduras e dos regimes totalitários. Primeiro, elimina-se a representação popular - aquela que permite a manifestação das oposições e dissidências - e adota-se alguma forma de “democracia direta”. Depois, como o ditador é a voz do povo e o intérprete de sua vontade, elimina-se também aquela forma de manifestação política, por supérflua.
Quanto ao capitalismo e à economia de mercado, na Venezuela, estão com os dias contados. O projeto chavista é “transformar o paradigma econômico capitalista atualmente hegemônico (...) outorgando ao sistema produtivo uma dimensão e um propósito de natureza coletiva, de maneira que seu desenvolvimento seja regido por uma visão social”. Ou seja, coletivismo à vista!
Com a Lei Habilitante, o coronel Chávez acumula poderes que fariam inveja a qualquer monarca absoluto do século 16 e a muitos ditadores de tempos mais recentes. Ele dispõe, agora, dos instrumentos para levar a Venezuela a uma longa e tenebrosa viagem pelo passado. Mas isso não lhe basta. Chávez quer inocular nos países vizinhos o germe do atraso e do autoritarismo. É um perigo a ser conjurado.