Livro mostra a grandiosa obra do fotógrafo
francês que testemunhou e registrou, em
cenas muito bem posadas, as transformações
do Brasil nas décadas de 1940 e 1950
Bel Moherdaui
Meu casaco, por favor: na posse de JK, o presidente brasileiro tem a expressão relaxada; o vice americano, Richard Nixon, mesma testa franzida de sempre, ajuda-o com o sobretudo |
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O Brasil que se vê nas páginas desta reportagem não existia antes de Jean Manzon. Ao desembarcar no Rio de Janeiro em agosto de 1940, fugindo da ocupação nazista, já com trabalhos publicados em revistas como Vu e Match, o fotógrafo francês de apenas 25 anos encontrou por acaso uma situação perfeita: um país em processo de modernização, em busca de uma nova imagem de si mesmo. Através de sua Rolleiflex e dos fundamentos do fotojornalismo, que na época era inovador – o da foto que conduz sua própria narrativa –, Manzon foi um dos grandes criadores dessa imagem. Às vezes oficial, às vezes fruto apenas da curiosidade do olho treinado de fotógrafo, mas sempre altamente elaborada, quase estilizada. Seu primeiro emprego foi no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de censura e divulgação da política do Estado Novo de Getúlio Vargas. De lá, três anos depois, passou para a revista O Cruzeiro, pérola do império de Assis Chateaubriand, onde por quase uma década (de 1943 a 1952) reinventou o jornalismnacional em dupla com o repórter David Nasser e ao lado de nomes que seriam grandes, como o de Millôr Fernandes, colaborador de VEJA que relembra, nas páginas a seguir, seus tempos de Manzon e companhia.
Café Filho faz café, Getúlio Vargas faz pose familiar e Adhemar de Barros abre o quarto para Manzon, de pijama e telefone. "Eu me aproximava de todos os grandes do regime", contou o fotógrafo sobre a época de trabalho no DIP |
Íntimo de poderosos, criativo, teimoso e dotado de enorme capacidade de persuasão, Manzon produziu um notável acervo de fotos e documentários (esses últimos, já no fim da carreira, laudatórios do Brasil grande do regime militar). Dentre quase 20 000 negativos, contatos e ampliações em poder da família, 199 fotografias foram selecionadas para compor o livro Jean Manzon Retrato Vivo da Grande Aventura (150 reais), que a Aprazível Edições lança em parceria com a Cepar Consultoria. Divididas em quatro eixos (Anonimato e Personalidade, Rústico e Industrial, Sagrado e Profano e Tradição e Modernidade), as imagens são, literalmente, retratos da formação do Brasil moderno. "As fotos de Jean Manzon transmitem mais do que o registro de uma cena, de um rosto. Elas refletem a atmosfera de uma época. São tratados com advérbios de intensidade", define o editor Leonel Kaz. "Existia uma grande identificação do trabalho de Manzon para O Cruzeiro com a afirmação da identidade nacional ligada à política do Estado Novo. Ele convivia com as idéias que circulavam entre os intelectuais do regime e as materializava em fotos", analisa Helouise Costa, vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, especialista no trabalho do fotógrafo. São fotografias cuidadosas e grandiloqüentes de trabalhadores na labuta, de transformações sociais (mulheres no mercado de trabalho, a evolução da moda, a migração do campo para as cidades) e da intimidade de artistas e poderosos – Getúlio, de quem Manzon se aproximou na época do DIP, foi um de seus personagens mais constantes.
Independentemente de quem estivesse em foco, era imprescindível, no trabalho de Manzon, a minúcia na preparação da cena e da pose antes do clique. "Esse fotojornalismo encenado é a grande força do trabalho dele. Hoje, beira a idéia de fraude. Mas na época o objetivo era concentrar o maior número de idéias da melhor forma possível. Encenava-se para chegar à essência do que se queria passar com a imagem", explica Helouise. Não que Manzon tivesse algum problema com a invenção pura e simples: ele e o parceiro Nasser produziram, na concepção literal do termo, diversas reportagens de veracidade discutível. Desde que o resultado fosse grandioso (e seu nome aparecesse em destaque), fazia parte do jogo.
"Um coleguinha capaz.
E petulante"
Millôr Fernandes
Nunca conheci ninguém famoso. Pois as pessoas que conheci, até os 13 anos de idade, eram as da família, e uns poucos vizinhos. E quando, com menos de 14 anos, comecei a trabalhar em O Cruzeiro, uma revista fundada dez anos antes pelo jornalista português Malheiro Dias, tinha à minha frente Gago Coutinho, um velhinho português, baixinho, com um dólmã de marinheiro rico, jamais poderia imaginar que ele, cinco anos antes de Lindbergh, tinha cruzado de avião o Atlântico Sul. Com várias paradas, é verdade. Nem poderia também imaginar que o pobre-diabo que ficava conversando comigo na rampa do edifício do Cruzeiro (na Rua do Livramento, onde o fantasma de Machado de Assis ainda transitava), chupando gomos de tangerina e cuspindo sementes, era o único regicida da história do Brasil, que matara o semiditador Pinheiro Machado. Nem que aquele magricela, acabado de descer do ITA, logo depois começaria a ser o maravilhoso Dorival Caymmi.
Por isso agora, ao abrir este magnífico álbum (é preciso braços fortes pra sustentar a obra) com algumas (fez dezenas de milhares) fotografias de Jean Manzon, fico perplexo: Manzon era um fotógrafo extraordinário, talvez mesmo um grande homem, chegado do mundo mágico que era a França nos idos de 40. Mas eu, que via aquelas fotos todos os dias, e todos os dias via a dupla que Manzon formava com David Nasser, brigando idiotamente pra saber o nome de quem saía na frente de quem na reportagem, não podia perceber que estava vendo se construir essa obra admirável. Conheci apenas um coleguinha capaz. E petulante.
O Cruzeiro era ainda uma publicação secundária no mercado. Vendia 10 000 exemplares por semana. Quando vendia 10 500 era uma festa. Sua concorrente, a Revista da Semana (fundada pelo mesmo Malheiro Dias) vendia 25 000 exemplares. Claro, o Cruzeiro era medíocre. As "reportagens" iam de Linda Batista (a cantora) "Na intimidade" a Dircinha Batista (a irmã da cantora) "Na cozinha". E não se admitia que uma "reportagem" atravessasse a barreira das duas páginas. Nesse ambiente, mais ou menos escapando da guerra, surgiu Jean Manzon, fotógrafo e aventureiro, fifty-fifty. Mas, embora seu nome e o de David Nasser aparecessem mais, o fundador da Nova Cruzeiro foi o extraordinário ser humano, o catalisador Frederico Bandeira de Melo Chateaubriand (Freddy), sobrinho do gênio empresarial e monstro moral Assis Chateaubriand (Chatô). Este só veio a saber do sucesso da revista quando já era fato consumado. Que, claro, logo passou a usar como uma (mais uma) gazua.
O impulso inicial da virada, da qual só pode falar quem a viveu, foi tão fulminante que logo depois todos os intelectuais de algum talento ou ambição acorreram ao chamado. Em dez anos a revista já tinha chegado a 750 000 exemplares. À nossa frente desfilavam Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Gustavo Barroso, Aurélio Buarque de Holanda (Aurélio "Vírgula"), Nelson Rodrigues, Marques Rebelo, Rosário Fusco, Lúcio Cardoso, tudo apenas coleguinhas, tudo comezinho.
Mas quem "fez" a revista foram seis garotos: o citado Freddy, a dupla David Nasser/Jean Manzon, Péricles Maranhão ("Amigo da Onça"), Millôr Fernandes (o locutor que vos fala) e Franklin de Oliveira com uma resenha semanal chamada Sete Dias. Franklin adquiriu imensa popularidade, que nós não entendíamos por que, dono de cultura asfixiante. Nós dizíamos que ele escrevia em várias línguas com algumas citações em português. Chateaubriand demitiu-o quando ele resolveu se candidatar a senador pelo Maranhão, seu próprio estado, por onde Chatô tentava se eleger agora, depois de ter perdido a eleição na Paraíba. Eta nóis, hein, mãe?
Mas aqui está, nesse esplêndido, imperdível álbum da Aprazível, com dois esplêndidos estudos, o prefácio de Francisco Carlos Teixeira e o posfácio de Ana Cecilia Martins, ambos mais confiáveis do que eu, a síntese necessária – O GRANDE JEAN MANZON. Porém, reparem: as fotos não são o Brasil visto por Jean Manzon, e sim o Brasil que se deixou amoldar por Jean Manzon. Cínico diante do modelo, com uma petulância que desarmava qualquer um, fazia com que todos, do ditador Getúlio ao mais inocente xavante, recém-saído do neolítico, posassem, nas poses mais extravagantes. Reparem no pistoleiro Tenório Cavalcanti, em Adhemar de Barros, o folquilórico governador de São Paulo ("Rouba, mas faz"), e nos mais simples camponeses e operários. As fotos, absolutamente naturais, são cuidadosamente posadas. Ao contrário de Cartier-Bresson, Manzon não espera "o momento decisivo". Ele o constrói. Sempre conseguia o que queria. Falta no álbum, não sei por que, a foto do deputado Barreto Pinto, espantosamente ridículo, de fraque dentro da banheira, o que provocou sua expulsão do PTB. Mas não falta, dentro do cadilaque de Manzon, a jovem Juliette Gréco, que, dizem, era desconhecida na França. Depois dessa foto, reproduzida pela Paris Match (Manzon veio de lá), se tornou a Musa do Existencialismo. Assim caminha a humanidade.
Ah, antes que eu me esqueça: na época ética era apenas uma palavra grega.
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