O que esperar de 2007, a partir do sucedido em 2006 no plano institucional?
2006 foi o ano da mistificação e da impunidade. Apesar de eleição não significar anistia dos crimes praticados, há uma geral indiferença ou esquecimento em face de acusações de abusos praticados no exercício de cargos públicos, pois o eleitor consagrou nas urnas réus em processos-crime por fatos graves, bastando lembrar Maluf e Palocci. Daí a sensação de imperar a impunidade.
A eleição de Lula também revela que a mistificação e a mentira não atingem o eleitor, indiferente ao ver-se enganado pelo chefe da Nação, que a cada passo dava uma desculpa para o descalabro moral de seu governo, formado por aqueles que qualificou de “traidores” ou “aloprados”.
Esta insensibilidade moral do eleitor brasileiro pode levar à conclusão de tudo ser permitido, até mesmo dobrarem os parlamentares os próprios vencimentos. Neste caso, houve forte indignação, mas o que impediu a consagração do fato consumado foi ter a proposta sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Se não fosse a inconstitucionalidade decorrente da forma como se determinou o aumento - por ato das Mesas da Câmara e do Senado, e não por seus plenários -, a majoração estratosférica, promovida pelos presidentes das duas Casas, candidatos à reeleição, em verdadeira compra de votos de seus pares, teria, talvez, prevalecido, com a certeza de o fato ser logo esquecido.
Mistificação também decorre de o governo começar sem Ministério, a demonstrar duas coisas:
A ausência de um plano de ação governamental que alicerce a base governista, de molde a se escolher o aliado mais apto a tocar determinada área da administração;
ser a composição do Ministério mera moeda de troca para as eleições das presidências da Câmara e do Senado, numa nova versão da compra de apoio político, mas com o mesmo antigo desprezo pelo Legislativo, visto como bazar de barganhas.
Apenas resta, portanto, a constatação inafastável de que a moralidade administrativa e o respeito à verdade não constituem condição, na vida brasileira, para se almejar um cargo eletivo. Nesse quadro de deliqüescência moral da política, afirma-se a liderança populista de Lula, que depois de tantas crises assume novo mandato revestido de perigoso voluntarismo.
Seria o discurso de posse do presidente Lula a indicação de um caminho melhor?
Não. O voluntarismo presidencial surge logo na frase confiante: “O desafio é grande, porém maior ainda é a minha disposição de vencê-lo.”
Adota o mote “acelerar, crescer e incluir”. É um bom slogan. Porém remanesce apenas o slogan ao não vir acompanhado da indicação sobre os meios políticos e econômicos de que se utilizará. Bem mais difícil do que em dia festivo fazer enunciado grandiloqüente é indicar os instrumentos e um consistente programa de ação a ser discutido no Parlamento e pela sociedade civil visando ao desenvolvimento e às medidas nos campos da reforma política, da educação e da segurança, nos quais o primeiro governo Lula foi um fracasso retumbante.
A pressa de Lula em obter o crescimento contrasta com o fato de que no seu governo foi o Brasil o país de menor crescimento na América do Sul. Se no governo Fernando Henrique, com todas as crises internacionais, o País cresceu apenas 2,3%, tal, no entanto, consistia no maior crescimento da América do Sul. As condições favoráveis da economia internacional foram desperdiçadas no último governo, e neste instante se quer celeridade para desatar os nós buscando avançar com velocidade. Tomara, agora, a disposição presidencial seja maior que o desafio.
Destaco, muito especialmente, a absoluta ausência no primeiro governo de uma política nacional de segurança pública iluminada por uma política criminal de cunho social e preventivo. Menos ainda houve uma política penitenciária, que nem de longe se limita à construção de presídios federais, o que, aliás, é apenas pequeno adendo da questão.
O que disse, todavia, o presidente sobre segurança pública, um dos problemas fundamentais do País? Disse apenas que cresceram as condições para a cooperação entre a União e os Estados. Esqueceu que a fixação de uma política legislativo-penal e penitenciária, bem como a formulação e o acompanhamento da execução de diretrizes para prevenção e repressão ao crime em âmbito nacional são tarefas fundamentais do Ministério da Justiça.
No plano da reforma política não menor é a indigência presidencial, pois se restringe a convidar todos a se reunirem num debate, sem sinalizar nenhum ponto mínimo, a demonstrar que fala por falar, sem a disposição proclamada de vencer os desafios. E não há maior desafio do que reestruturar as instituições políticas, vitimadas por um sistema eleitoral e partidário indutor do oportunismo político, da corrupção, da indisciplina do cada um por si.
No campo da educação, a fala presidencial toca em pontos descuidados no seu governo, como a qualificação e valorização do professor e a melhoria da formação escolar. As propostas para esse setor, se vencidos os desafios, serão um grande feito, mas o passado gera desânimo.
Ítalo Calvino, em relato sobre sua vida, afirmou ter tomado consciência de ser o mundo complicado, o que o levou a sufocar em si mesmo tanto os movimentos da esperança, como da angústia.
O Brasil é deveras complicado e paradoxal, a ponto de a bisonha parábola da borboleta, que gira na internet, inspirar o discurso do chefe da Nação, o que me leva a sufocar a esperança, mas, sem a lucidez de Calvino, ainda ser sacudido pela angústia.