Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Lula diz o que quer


Artigo - Gilberto de Mello Kujawski
O Estado de S. Paulo
4/1/2007

Este Lula é mesmo incrível. Sua retórica é uma salada mista tão absurda que ficamos em dúvida se ele está falando sério. No entanto, em meio a tanta errância de idéias e palavras, por vezes Lula diz a coisa certa: “Se você conhece uma pessoa muito idosa que seja de esquerda, é porque ela está com problemas.” Acertou em cheio na mosca. Ao contrário do que parece, Lula, ao abrir a boca em público, mesmo no auge do arrebatamento, nunca fala em vão, a esmo. Suas palavras têm endereço certo. No caso de sua polêmica declaração sobre a esquerda, o endereço é o PT, os poucos xiitas que ainda restam no partido. Meio desconcertado pelo escândalo entre seus pares, fez que voltou atrás, emendando: “Falei brincando. Este povo não tem mesmo nenhum senso de humor”...

A Luiz Inácio serve como uma carapuça esta paródia de Fernando Pessoa, ao acusar os poetas de fingidores: Lula é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é verdade,/ a verdade que deveras diz. Ele diz uma verdade e depois finge que “foi de brincadeira”...

Choveram protestos de militantes encanecidos (“Sou de esquerda com muita honra”, “Sou de esquerda, mas da esquerda civilizada”, etc.), ironias fuzilaram de todo lado, alguns intelectuais se vitimizaram em atitudes patéticas, o tempo passou, mas não se chegou ao consenso sobre o que é a esquerda e o que é ser de esquerda. Esquerda? Que bicho é esse? Ou que raça é essa? - para dizer como aquele senador do PFL, acusado perfidamente de racismo. Não nos vamos perder em especulações acadêmicas nem em complicações pedantes que fogem ao entendimento do homem comum. Afinal, homens comuns somos todos nós. Para definir a esquerda é preciso atinar com uma fórmula nítida, límpida, intuitiva, ao alcance de todos. A melhor fórmula que me ocorre é a seguinte: esquerda é a arte de encontrar para cada solução um problema. Não é esta a arte dos trapalhões? Estamos cansados de saber que toda solução gera sempre muitos problemas. Mas os problemas suscitados nem por isso desqualificam a solução que deve ser reconhecida como boa, embora sujeita a reajustes constantes. Por exemplo, dar banho de bacia na criança suja a água. Será por isso que devemos jogar fora a criança junto com a água do banho, ou suprimir o banho sob o pretexto de que faz mal para a saúde do menor?

Tomaremos quatro casos, quatro soluções políticas magníficas, logo interpretadas como problemas atrozes pela esquerda: a democracia, o liberalismo, o quinto centenário do descobrimento da América e a globalização.

A democracia foi a única solução política à altura dos tempos modernos, na medida em que o regime democrático quebrou a barreira entre a sociedade em franca expansão e o poder, de modo a não tolher o surto de crescimento das nações desde o Renascimento. Na democracia o governo é povo e o povo é governo. Esta circularidade permanente entre povo e governo renova periodicamente o governo e impede que ele se atrofie, esclerosado num só mandante, ou numa classe, ou num grupo de governantes. Pois bem, não tardou que a esquerda, no século 19, encontrasse para a solução democrática um problema, falso problema. Alegaram que a democracia não passa do instrumento da burguesia para se perpetuar no poder. Ao tempo do sufrágio restrito, que excluía do direito de voto os pobres, as mulheres, os menos instruídos, essa objeção poderia ter algum sentido, não a partir do voto universal, como hoje.

A democracia diz respeito à titularidade do poder. Quem deve mandar? O povo, a sociedade entendida como a coletividade dos cidadãos. O liberalismo trata de outra questão: seja qual for o titular do poder, é necessário e indispensável que este tenha limites. Vejam bem, que tenha “limites”, não que seja pouco ou mínimo. A democracia pode degenerar na pior forma de absolutismo se o poder público não encontrar limites na liberdade individual, como ocorreu na Grécia e em Roma. O melhor é que democracia e liberalismo andem juntos. Ah, lamenta a esquerda, de nada valem as liberdades formais sem as liberdades reais. O que é certo, com um detalhe: sem a garantia das liberdades formais (todos são iguais perante a lei, liberdade de crença, de consciência, de opinião e de expressão, etc.) jamais teremos o direito de reclamar as liberdades reais, a participação na riqueza, por exemplo.

A comemoração dos 500 anos da descoberta da América foi um festival de ignorância, ressentimento e má-fé, comandado pelos mais perfeitos idiotas latino-americanos. A descoberta da América significou sua incorporação ao Ocidente, um fenômeno inevitável e irreversível porque na esfera de expansão européia. Para os que querem voltar a História para trás, a América deveria permanecer para sempre intocável, com a dominação asteca no México fundada na escravatura, os sacrifícios humanos seguidos, o canibalismo ritual, os cultos religiosos de sangue, terror e morte e os genocídios entre os pré-colombianos, que nada ficavam a dever ao invasor espanhol.

A globalização agrava as desigualdades? Não é este o ponto. O certo é que a globalização coloca todos os países em presença uns dos outros, e isto facilita, inclusive, o combate às desigualdades. Joguemos fora a água do banho, mas salvemos a criança.

Direita e esquerda são posições estáticas, termos desgastados, assim como centro, sinônimo perfeito de inércia. No frigir dos ovos, na hora do “vamos ver”, nem a direita, nem a esquerda ou o centro decidem. O que decide é a chamada “força das coisas”, com resultados surpreendentes. Conforme a sugestão de notável pensador, a imagem adequada para representar a força das coisas é a proa, a proa que equilibra o navio e o impele para a frente, sem desvio nem ruptura do caminho até então traçado. Avanço em continuidade. O estadista é um navegador.

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